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Irmandades da estrada



Ao ouvir o inconfundível ronco dos motores, muita gente ainda pode pensar nos motociclistas como um bando de rebeldes, sem causa ou família. O estereótipo tem raízes históricas, mas segundo Luiz Cláudio de Oliveira Junior que prefere ser chamado de Kadaj e é um dos membros ativos do motoclube Penumbra M.C., em Sorocaba, ele não se sustenta. “Mal sabem eles que somos pessoas que se reúnem por uma mesma causa e que se tornam uma família. A causa é andar de moto e a família é cada irmão que você consegue na estrada”, ele defende, numa noite de quarta-feira, reunido aos demais membros do clube para celebrar o seu aniversário de 31 anos.
A família “de verdade” de Kadaj não está lá; ele afirma que seus parentes se afastaram, após desentendimentos, e perderam o contato, mas isso não significa que ele não saiba como é fazer parte de uma família grande e unida. Hoje, o Penumbra M.C., um dos mais novos clubes reconhecidos na cidade, tem 14 membros, mas a relação de irmandade se estende atoda a comunidade motociclista de Sorocaba.
“O Luiz, antes de ser o Kadaj do Penumbra, era uma pessoa isolada, com poucos amigos e basicamente uma alcoólatra sem rumo. Antigamente, eu só bebia e trabalhava. Hoje, eu tenho aonde ir, o que fazer e um clube para representar”, ele conta, referindo-se à própria história.
Segundo o presidente do clube, Gabriel Vitor Cláudio da Silva, 25 anos, mais conhecido como Greg, o Penumbra nasceu de um grupo de nove amigos da escola, que, naquela época, queria o que costuma ser comum na idade: independência, liberdade, diversão. Por que não unir tudo isso ao tirar a carteira de habilitação? Greg conta que era apaixonado por carros antigos, mas, para aqueles amigos, as motocicletas eram mais acessíveis. Era apenas uma questão de tempo até que surgisse a ideiade formar o Penumbra M.C., instigados pela série “Sons of Anarchy”, do mesmo modo que filmes como “The Wild One” (O Selvagem) e “Easy Rider” (Sem Destino) foram as inspirações para as gerações mais antigas.
“A série não foi o motivo, mas me fez olhar com outros olhos para o motoclubismo. Daí foram dois anos andando pelos clubes, conhecendo o movimento e as pessoas, e descobrindo onde a gente estava entrando, até ter a iniciativa de montar um motoclube. Existe um abismo que separa a ficção da realidade”, conta Greg.
Hoje, no Brasil, são 3.841 motoclubes cadastrados pela Revista Motoclubes, 484 só no estado de São Paulo.
Irmandade
O sentimento familiar é uma das principais causas que levam motoclubes antigos a serem, de certa forma, hostis com grupos mais novos, pois muitos membros acreditam que é melhor fortalecer os clubes que já existem, em vez de levantar novas bandeiras. Entretanto, os membros contam queo Penumbra teve uma boa aceitação por parte dos motoclubes antigos de Sorocaba, o que é visível pelos motociclistas de outros clubes marcando presença na festa de aniversário de Kadaj.
 “Apesar de sermos um clube recente e formado por membros de faixa etária baixa, nós já adquirimos um respeito razoável por parte dos outros motoclubes. Nunca tivemos problemas, mesmo entre os mais antigos. Alcançamos isso demonstrando o nosso respeito em relação a eles, sabendo nos portar na estrada e a respeitar a irmandade”, diz Kadaj.
Nessa família, todos são importantes, como Greg afirma: “O Penumbra tem três pilares: a estrada, a união e a caridade. Somos uma máquina e cada maluco aqui é uma engrenagem para manter isso funcionando.” Outro membro, Marcos Paulo Alves da Silva, 30, de apelido Marcola, diz que são como um grupo “utópico”, pois há liberdade para todo tipo de identificação sexual, política ou religiosa, porque o respeito é um requisito básico.
“Cada clube é uma casa. Eles são iguais, em alguns aspectos, mas sempre com suas particularidades. Eles seguem essa tendência ou necessidade humana de formar grupos. O motoclube tem a mesma energia de uma torcida, uma família ou uma religião”, completa Greg.
Solidariedade
Grande parte dos clubes de motos se envolve com ações sociais. “A visão de um motoclube somente para andar de moto morreu nos anos 80. Hoje os objetivos são viver, comparecer e ser uma pessoa melhor, mais humana”, explica Kadaj.
Como presidente, Greg procura sempre envolver o clube em causas solidárias. Nesses quase quatro anos de história — desde quando passaram a se identificar como Penumbra M.C. —,já fizeram diversas ações, como no último Dia das Crianças.
“Fomos ao Carandá, que, além de ser um bairro carente, é onde eu moro. Ou seja, nem é mais caridade, porque caridade é muito vertical, de cima para baixo; é solidariedade, ajudando um irmão de clube e a nossa quebrada, o nosso bairro. A gente tenta se ajudar e ajudar o próximo. Porque são poucos os integrantes que têm uma condição financeira boa, a maioria está na ‘correria’”, diz Greg.
Sobre os impactos das assistências e a repercussão das ações, afirma que não estão na mídia por duas razões. A primeira se refere à proporção: fazem muita diferença, mas apenas para algumas pessoas; a segunda é a falta de interesse em autopromoção.“Sentimento meu, não do clube: a nossa ação social é um curativo numa hemorragia, ou seja, é muito difícil nós resolvermos a situação. O que a gente tenta é dar uma semana tranquila para alguém, ou mesmo mudar o dia de uma pessoa. É difícil, porque não conseguimos fazer essas ações continuamente, tudo o que a gente reúne de alimento ou brinquedo, ou o que for, nós doamos. A situação é muito mais complexa do que isso e não temos condições de saná-la, mas a gente sempre se preocupa com isso. Sempre foi uma questão importante para o Penumbra M.C.”, conclui.
História, representatividade e regras de comportamento
Há várias discussões sobre como começou o movimento do motociclismo. Entretanto, todos da área concordam que os militares estadunidenses, principalmente nos períodos pós-guerra, foram os que causaram a febre dos clubes de moto. As motocicletas também eram utilizadas no deslocamento dos soldados e, muitos deles, ao regressar ao seu país de origem, não conseguiram se adaptar novamente à sociedade devido ao estresse pós-traumático (PTSD), necessitando de válvulas de escape. Assim, a irmandade conquistada pelos desafios passados nos campos de batalhas e a hierarquia do regime militar foram absorvidas pelo motociclismo.
No movimento, há certas regras e padrões de conduta, que abrangem tanto sinalizações e formações em viagens quanto os comportamentos exigidos dos membros como, por exemplo, o respeito ao período de luto, tempo em que o motociclista que saiu ou foi expulso de um motoclube deve esperar antes de poder ingressar em outro. Enquanto algumas características são universais, muitas outras dependem da dinâmica do próprio grupo.
“Há outros tipos de organizações que andam de moto, como os ‘motoamigos’ (MA) e os ‘motogrupos’ (MG), que em geral exigem um comprometimento mais ameno do que os motoclubes (MC). Normalmente, os MCs têm uma sede para manter e um estatuto para seguir. Logo de cara, a gente quis se lançar no motoclubismo porque era com o que mais nos identificávamos”, justifica o presidente.
Já Luiz Fernando Rinaldi Riato, 25, explica que cada motoclube possui suas regras em estatutos pré-definidos, como um sistema de leis e punições. Além da ordem, cada um define seu estilo; alguns limitam os participantes por modelos determinados de motocicletas ou por cilindradas da máquina. Outros permitem que os membros utilizem símbolos de outros clubes em seus coletes. Os clubes tradicionais, como o Penumbra M.C., geralmente estabelecem um gênero somente homens ou somente mulheres —, outros são mistos.
Dentro da tradição, também há os coletes, geralmente confeccionados em couro preto, marcados pelas identificações do próprio grupo, os chamados patches, ou graduações, uma herança do meio militar. Essas divisas contêm informações essenciais como o nome do grupo, o nome do motociclista, a cidade, o estado e a função.
A junção desses elementos, mais o logo do motoclube, formam o “colete fechado”, almejado por todos os membros. Para consegui-lo, é preciso passar por alguns estágios, que começam pela conquista do respeito dos demais. Há um período probatório, a partir do qual o membro vai completando, ou “fechando” o colete à medida que conquista graduações conforme merecimento.“Por último, há o logo do motoclube, normalmente, alcançado com dois anos de clube e depois de muita dedicação. Tradicionalmente, alguém só se torna membro do clube quando fecha o colete”, explica Greg.
“Não é só você andar de moto e viajar. Se fosse isso, seria fácil”, afirma Kadaj. “Mas é difícil mostrar quem você é; o período probatório é para você mostrar quem é, como age e como reage. E o colete fechado é o estágio final, para mostrar quem você é de verdade para todos os seus irmãos de estrada, não só os do clube. Você não precisa ficar se escondendo por máscaras na sociedade; você é uma pessoa na estrada e tem que continuar sendo com a moto parada também.”
Em concordância, Riato explica que é necessário se identificar com a ideologia: “Só acontecerá o convite para entrar de fato se bater a sua ideologia com a do motoclube e vice-versa. Senão, você vai rodar com outros clubes, com ideologias e regras diferentes.” O que justifica, segundo ele, o fato de o Penumbra continuar apenas com homens jovens, de 25 a 30 anos: “Os clubes grandes têm uma faixa de idade mais alta e, às vezes, os jovens que tentam entrar nesses clubes não se encaixam, por viverem épocas diferentes da vida. Assim como teve caras mais velhos que tentaram entrar no nosso e não ficaram muito tempo.”
Após o ingresso, existe uma divisão de funções, que estabelece a ordem hierárquica. Mas não é o cargo que determina quem tem voz no Penumbra M.C. “Nunca precisei falar que eu sou o presidente, nunca precisei me impor, porque eu acho que fazer isso é uma afirmação do meu fracasso como líder. Eu tento estimulá-los a sair, a agir, a receber outros irmãos, a retribuir a presença em outros clubes que estiveram no Penumbra, a participar de ações sociais, ou simplesmente a apoiar um membro. A forma que eu encontrei para incentivar as pessoas a fazer as coisas foi o exemplo. Se eu quero a sede limpa, por exemplo, eu pego a vassoura e começo a varrer. Tento contagiar pelo exemplo, perguntando ‘E aí, vocês vêm comigo?’.”
Agência Focs / Jornalismo Uniso
Texto: Bernardo Saber, Celinne Nishimura e Eliton Lucas
Imagens: Arquivo Pessoal

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