Muito além da música
Júlio Bataiote, o Zorel, professor de história e nome importante da cena roqueira da região, fala sobre como a ideologia punk surgiu em sua vida, de religião, lecionar e vegetarianismo
“Cara, aceita chá?” É com essa singela pergunta que sou recebido na cozinha da casa do músico e professor de história Júlio Cezar Bataiote. Poucas pessoas conhecem Júlio por seu nome de batismo. Zorel, apelido que ganhou num campeonato de skate por ser muito parecido com um participante que se chamava assim, pegou e é por essa alcunha que ele atende.
Zorel é figura carimbada dentro da cena punk de Sorocaba e região, mas não é só isso. Já gravou e tocou com várias bandas, organiza shows, esteve em turnê pela Europa com a banda paulistana ‘Execradores’ e se define como anarquista, vegetariano e ateu.
Primeiro contato – É em 1988, aos 12 anos de idade que, influenciado por sua prima Mariana, Zorel começa a entrar em contato com o punk, estilo musical bastante politizado que defende em suas letras a abolição da hierarquia, do corporativismo comercial parasitário e a liberdade de cada ser o que quiser ser e, por que não, a diversão, entre outras coisas. Ramones, Sex Pistols, Cólera e Ratos de Porão foram as primeiras bandas a lhe fascinar. Mas, como ele conta, foi a batida alucinante do ritmo que o fisgou a princípio. “Eu comecei a curtir como música, independentemente de questões relacionadas à política, até porque eu era muito novo.”
Zorel explica que seu envolvimento político e ideológico começa a partir de 1992, quando conhece várias pessoas ligadas ao movimento. Pelo grupo circulavam livros anarquistas como Utopia e Paixão (Roberto Freire), Textos Escolhidos (Leon Tolstoi) e O que é Anarquismo (Caio Túlio Costa). Poucos meses depois estava fundado o Movimento Consciência Punk de Sorocaba (MCPS).
O primeiro evento organizado por eles foi um protesto contra o carnaval. Depois disso, nasceram as primeiras bandas do círculo de amigos de que o hoje professor fazia parte. “Nós ensaiávamos todos os sábados em Brigadeiro Tobias, na casa do Cleiner [integrante do grupo]”. ‘Sobreviventes da Katastrofe’ e ‘Fator HC’ são algumas dessas bandas. É a partir desses esforços iniciais que eles criam o fanzine [revista artesanal de baixo custo] ‘Coluna Punk’, que tinha como objetivo difundir ideias do grupo, entre outras coisas.
Para Zorel, 1994 é um ano decisivo. Foi quando teve a oportunidade de assistir o show da banda Ramones, em São Paulo. É nessa apresentação que ele começa a ter um contato maior com pessoas de fora da região de Sorocaba. Principalmente pessoas de São Paulo e ABC Paulista, além de punks de outros países.
“Faça você mesmo” – Depois do gole de chá gelado para hidratar as cordas vocais, Zorel fala sobre o momento em que começa a se corresponder por carta (sim, aquelas de papel que são colocadas no correio) com pessoas da Colômbia e Finlândia. É quando o pilar fundamental do movimento punk, o “Faça Você Mesmo” [conceito que, como o nome sugere, prega a independência financeira e artística de bandas] ganha corpo. “Em 1996, começo a participar do “Faça Você Mesmo” de forma mais efetiva, os primeiros contatos foram com pessoas da Colômbia e o ‘Força Macabra’, banda da Finlândia que canta em português”.
Paralelo a isso é lançada uma coletânea chamada ‘SP Punk’ que conta com duas bandas de Sorocaba, ‘Anarphabetos’ e ‘Por que?’. Esta última contando no vocal e guitarra com Raul Marcelo, ele mesmo, vereador por duas vezes, deputado estadual e candidato derrotado à prefeitura de Sorocaba pelo PSOL nas últimas eleições.
Essa intensa troca de informações com punks de diversos lugares faz com que ele receba e envie muito material, principalmente discos. O contato com selos [pequenas gravadoras] se estreita e no mesmo período, em 1999, é convidado para tocar bateria na banda paulistana ‘Execradores’. Em 2000, eles saem em turnê pela Europa.
Em abril de 2000, junto com a banda ‘Amor, Protesto e Ódio’, eles chegam ao velho continente para uma estadia de 35 dias e, simplesmente, 31 shows em 10 países. Holanda, Bélgica, Alemanha, Áustria, Suíça e Eslovênia são alguns deles. O contato todos estes estrangeiros constrói uma rede de troca de experiências. A ponte Sorocaba/Europa estava estabelecida. A cena do interior paulista ganha uma cidade referência e o número de shows internacionais é cada vez maior. Outro reflexo é o nascimento de vários grupos na região, como enaltece Zorel: “As bandas de fora que vinham tocar no Brasil passavam obrigatoriamente por Sorocaba, acabou virando rota”.
Já em 2002, quando os olhos dos brasileiros estão voltados à Copa do Mundo Japão/Coréia, o ‘Execradores’ volta à Europa. Desta vez, são dois meses de turnê e 55 apresentações, passando por 14 países.
Fazer tudo isso sem o patrocínio de grandes gravadoras ou sem ter nascido rico é uma conquista no mínimo respeitável. Eles não deviam, nem devem, nada a ninguém.
Sobre lecionar – Final dos anos 90, um jovem anda de bicicleta pelas ruas da cidade a trabalho. Ele é funcionário de uma empresa de telemensagens GLS [gays, lésbicas e simpatizantes, à época] e seu dever era cobrar os clientes de porta em porta. Essa ocupação incomum foi uma das primeiras profissões de Zorel antes de se tornar professor. Os postos de office-boy e balconista de uma das lanchonetes da Universidade de Sorocaba também estão inscritos em sua carteira de trabalho. Foi trabalhando na universidade que ele começa a interagir com estudantes de uma forma mais experiente e isenta do que quando era, ele também, estudante. Influenciado por esse convívio, por amigos e por um professor do ensino médio, decide estudar História: “Tive um professor de História no ensino médio que tinha um modelo de aula diferente e ideias de esquerda, isso me estimulou.”
Seu objetivo era entrar no “sistema” para tentar semear entre seus alunos as ideias em que acredita. A relativa autonomia que um educador tem também foi fundamental na escolha dessa profissão. “Tem um caráter ideológico, porque se fosse só pela questão financeira eu já estaria fazendo outra coisa”. Sua postura com relação a determinados temas já se transformaram em problemas em uma escola pela qual passou, é em função disso que jamais revela o partido político, o time que torce e nem a que religião segue em sala de aula. Já deu aula escolas do Estado, escolas particulares, em presídios, Ongs e etc.
“Deus não existe” – Bakunin, filósofo e sociólogo russo, expoente do anarquismo, acreditava que Deus era o Estado. Uma instituição absoluta que quer aumentar, crescer, conquistar. Uma organização da força. É influenciado pelas palavras do teórico que Zorel se define como ateu. Existem outros motivos como, por exemplo, a frase “é porque Deus quer”, dita por seus familiares para explicar qualquer dificuldade pela qual passassem. Para ele, Deus não tinha nada a ver com aquela situação e sequer existe.
Dentro do movimento punk, a religião raramente é pautada e se recebe todos os tipos de crenças no meio, sem distinção. Zorel já foi defensor obstinado do ateísmo. Discutia, promovia o tema e vestia uma camiseta com as palavras “Deus não existe”. Talvez mais maduro e para não ‘chocar tanto o lar’, ele admite que atualmente esse tipo de preocupação foi deixada de lado: “Hoje eu não me importo nem um pouco se Deus existe ou não”.
Vegetarianismo – Há 12 anos, quando trabalhava na lanchonete da Universidade de Sorocaba. Era domingo e fazia quase 40 graus. Para piorar, a Universidade recebia centenas de o vestibular da Fuvest. Ao meiodia, todos foram almoçar numa churrascaria ali perto. Lá, Zorel observava todos aqueles “estudantes burgueses” atacando a carne de forma selvagem em um “banquete nefasto”. Rapidamente percebeu que compartilhava e fazia parte de tudo aquilo. Inevitavelmente seu estômago começou a pesar por causa da carne, assim como sua consciência. Passou o dia todo muito mal. Quando chegou em casa refletiu sobre o assunto e sobre as questões político-ideológicas envolvidas nele. Concluiu o seguinte: “Eu não faço parte disso”. A partir do dia seguinte, nunca mais comeu carne.
Ficou bem claro que a opção pelo vegetarianismo é fundamentada numa questão política e ética. Atualmente, declara que esses hábitos alimentares estão mais próximos ao que se costuma chamar de veganismo. Ou seja, a restrição não é apenas à carne, mas também à ovos, leite, couro, cosméticos e etc., tudo que derive direta ou indiretamente de animais e seu sacrifício.
Cenário atual – Zorel me mostra sua coleção de discos com entusiasmo e atenção. Entre vinis, CDs e fitas cassete encontram-se bandas dos quatro cantos do mundo. Israel, Malásia, Eslovênia, Macedônia e Nepal, fora os nacionais, lançados por ele mesmo. Em seguida a conversa toma o rumo do cenário atual. Ele considera que o sentimento e a proposta punk do “Faça Você Mesmo” simplesmente estão morrendo. A preocupação coletiva não existe mais, o que importa agora é quantos amigos as pessoas têm nas redes sociais. Quando o assunto é a nova geração, o pessimismo é ainda maior. Com o tom de voz elevado, ele reclama do desinteresse dos mais novos. “A molecada diz coisas que não viveram e sem a preocupação de pesquisar direito o assunto. Eles arrotam na sua cara verdades absolutas, com uma arrogância absurda e apoiada numa ignorância extrema”.
Aos 35 anos, Zorel se orgulha do passado, do presente e do que ainda pode ser feito pelo punk. |
Cds, vinis quadrados e capas artesanais compõem a coleção do músico |
Wemerson Araújo (AgênciaJor/Uniso)
Muito legal a matéria.
O Zorel é meu colega, tanto de Universidade como também de barulheira pelo submundo do underground.
É nóis mano!
Zorel: Pessoa espetacular que conheci no meio dos anos 90 e estimo muito até hoje! Satisfação imensa em poder ver aqui registrado em palavras aquilo que é muito maior quando o ouvimos! Grande abraço Zorel! Evandro – Boituva/SP
Que legal a matéria mano!!
vida longa guerreiro
abraço
Zorel grande amigo e guerreiro que está na luta e na resistência!
Abraços e parabéns pela entrevista!
Juninho – Agudos/SP