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Um olhar além do espelho

Trans-for-mar: Fazer adquirir ou adquirir novo aspecto, nova forma, novo caráter; Fazer mudar ou mudar de uma condição a outra. Para quem é transgênero, no entanto, o ato de se transformar vai muito além desses significados encontrados em dicionários: transformar-se é, acima de tudo, encontrar-se; é transcender.
Para Ella Vieira, formada em Gênero e Sexualidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), transgêneros são aquelas pessoas que não se identificam com o gênero designado no nascimento. No entanto, o psicólogo e mestre em Educação Sexual pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Tom Rodrigues, explica que não existe um momento certo da vida para que essas pessoas comecem a questionar os gêneros aos quais foram “encaixadas”. “Mas é comum que, desde a infância, essas pessoas não se identifiquem com o gênero que foi compulsoriamente imposto a elas e queiram mudar”, completa. Foi o caso de Noah Renard, 18, cuja transgeneridade despertou logo na infância. “Com uns quatro anos ou mesmo antes já me sentia ‘diferente’”. 
 Noah Renard
 Tom Rodrigues destaca, ainda, que a adolescência é outra fase importante para as descobertas. “É nesse momento que nascem os caracteres secundários do corpo, e há o despertar para sexualidade”. Para Alice Vilas Boas, 21, os questionamentos tiveram início por volta dos 13 anos, quando não conseguia entender o porquê das amigas desenvolverem seios, e ela não. “Foi quando comecei a me entender em um corpo e identidade de gênero diferentes daquilo que tinha ganhado socialmente”, conta. Já para Nícolas Oliveira, 23, que sempre se sentiu desconfortável num corpo feminino, era comum não gostar do via no espelho. “Me sentia diferente das outras garotas. Veio, então, aquela parte do crescer e ‘criar corpo’. Foi quando parei de olhar no espelho, porque não gostava do que via. Não era aquilo que queria. Não era eu”.
A parte de assumir para si mesmo e para os outros a transgeneridade é outra dificuldade enfrentada, principalmente, pela falta de informação, como ressalta Cecília, 20, que preferiu não se identificar. “Quando me assumi para os meus pais, a única informação à qual tinha acesso era sobre o ‘ser gay’. Então, com quase 18 anos, me assumi como gay e até hoje é um processo de desconstrução de mim mesma”.
Alice Vilas Boas lembra que travestis e transexuais vivem numa sociedade despreparada para atender novas demandas. “Quando comecei a sentir a vontade de me assumir foi a pior dificuldade pela qual passei, porque tudo o que é relacionado a pessoas trans é inviabilizado e tratado com descaso”. No caso de Ametista Vieira, 21, ela acabou por ser expulsa de casa antes mesmo de se assumir como trans. “Encontrei mais dificuldade ainda em me aceitar, porque já sabia de tudo que ia passar”.
Processo de transformação – A transformação faz parte da transgeneridade. Conforme o psicólogo Tom Rodrigues, algumas pessoas desejam fazer uma redesignação genital, hormonização, utilização de prótese, além de obter novos documentos com o nome social. “No início, a mudança tende a estar relacionada à experiência corporal. Depois, vem a retificação dos documentos. Mas é um processo singular, que varia a cada pessoa”.
Nícolas Oliveira, por exemplo, iniciou sua transformação há pouco mais de um ano e meio. “Comecei mudando as roupas, depois o corte de cabelo, e, quando me senti preparado, fui para a fase de ‘sair do armário’, mudar de nome, pronomes, ir ao psicólogo e procurar os médicos necessários para poder iniciar a hormonização”.
 Nícolas Oliveira
Cecília comenta que não se transformou porque, de certa forma, sempre foi a Cecília. “O que costumo falar para as pessoas, que me enxergam como uma pessoa diferente, é que quando criança me impuseram uma socialização masculina à qual fui contra, e hoje tenho a liberdade de performar meus aspectos de feminilidade”.
Ametista iniciou sua hormonização em 2016. “Foi incrível poder ser quem realmente eu era, e sempre fui mesmo sabendo como seria a minha vivência. Tive muito apoio dos verdadeiros amigos”. Já para Paula, 19, o processo foi mais delicado, agravado pela falta de informações em Sorocaba. Enquanto Alice aborda o processo doloroso e, ao mesmo tempo, libertador. “Sofri a transformação de todas as maneiras. Mas por dentro estava me sentindo completa, sentindo o começo de uma vida real”, completa Alice.
O psicólogo ressalta que é importante respeitar a transição de cada um, porque se dá de forma individual. “O processo de fato pode ser muito doloroso e é, sobretudo, por uma sociedade transfóbica. Uma sociedade violenta, que agride das formas mais sutis até as mais agressivas, como espancamentos e mortes”, afirma o psicólogo.
Violência – Dados da Organização Não-Governamental Transgender Europe (TGEu), publicados em 2016, apontam que 868 travestis e transexuais foram mortos nos últimos oito anos no país.  Número que deixa o Brasil no topo do ranking dos países com mais registros de assassinatos de pessoas transgêneras. Só em 2017, entre janeiro e setembro, o site “Quem a homotransfobia matou hoje?”, do Grupo Gay da Bahia (GGB), já registrou 136 homicídios contra travestis e transexuais no país.
Nícolas se sente assustado com esses números, não só por saber que é o país que mais mata, mas pela perspectiva de vida. “Todo dia se lê uma matéria sobre alguma pessoa trans que foi assassinada. A gente acaba ficando com medo, mas tem sempre que manter a cabeça erguida e continuar lutando. Sem luta não tem mudança”. Noah sente tanto com medo quanto indignação. “É difícil porque não existem campanhas de conscientização nas escolas e em nenhum meio de comunicação. Pessoas trans são sempre representadas de forma negativa ou cômica. Todo o esforço que o movimento trans tem em informar e em punir pessoas transfóbicas é substituído por atos preconceituosos”.
Clarice Almeida, 23, se sente “assustada e indignada”. Cecília acha péssimo. “Você consegue se imaginar saindo de casa sem saber se vai voltar?”, questiona. Já Alice conta que quando descobriu o ranking de assassinatos ficou em pânico por dois meses e não conseguia sair de casa sozinha. “Depois, comecei a pensar e cheguei à conclusão de que deveria enfrentar meu medo. Afinal, acordar sendo trans no país que mais mata travestis e transexuais do mundo é uma vitória”.
“Após tanta coisa, hoje me sinto livre, mais feliz e até mais saudável”, alega Nícolas. Orgulho, felicidade, liberdade, realização são palavras que passaram a fazer parte da vida dessas pessoas. “Sou orgulhosa da mulher que me tornei. É importante saber que todas as formas de amor são maravilhosas, todas as expressões de gênero são incríveis e que todas as formas de ser são lindas”, afirma Alice. “Sou muito mais a atriz da minha peça do que era antes. Eu era mais uma marionete vivendo sob os moldes da minha família, e hoje consigo trilhar o meu caminho em busca da minha felicidade”, finaliza Clarice.
Texto e fotos: Beatriz Oliveira/AgênciaJor

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