Invasão da Ucrânia completa oito meses e pode gerar mais impacto à produção de alimentos
RAFAEL FILHO
(AGÊNCIA FOCS / JORNALISMO UNISO)
A guerra na Ucrânia completa oito meses nesta segunda-feira (24). Planejada pelo presidente russo, Vladmir Putin, a invasão do país vizinho ocorreu em 24 de fevereiro de 2022 e nesses 242 dias tem impactado a vida de milhares de pessoas não apenas no Leste Europeu. Uma das preocupações crescentes é quanto à disponibilidade de fertilizantes no mercado global, o que pode repercutir de maneira mais acentuada na oferta de alimentos no mundo todo.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, já havia reforçado este alerta em pronunciamento divulgado pelo portal da rádio francesa RFI, no último mês de agosto. “Sem fertilizantes em 2022, pode não haver comida suficiente em 2023. Obter mais alimentos e fertilizantes da Ucrânia e da Rússia é fundamental para acalmar os mercados e reduzir os preços para os consumidores”.
Mas qual a importância dos fertilizantes para a produção de alimentos no Brasil? Segundo o professor Paulo José Sanchez, formado em Medicina Veterinária e Administração de empresas, o Brasil reúne algumas características que favorecem essa produção. “Nós temos áreas e clima favoráveis. O grande problema é a diversificação do solo”. Por todo território nacional, existem dois extremos: áreas onde o solo é muito fértil, ou seja, tem muitos nutrientes, e outras onde ocorre o contrário, o solo é muito pobre. É justamente no segundo tipo de área, cuja extensão é considerável, segundo Sanchez, que há maior demanda de suplementação de nutrientes, ou seja, fertilização.
A coordenadora do curso de Engenharia Agronômica da Universidade de Sorocaba/SP (Uniso), Patrícia Favoretto Renci explica que as mudanças climáticas têm impacto na aceleração de doenças, influenciam no ciclo das pragas e na redução da qualidade dos solos. Os fertilizantes ajudam a garantir a sustentabilidade dos sistemas agrícolas. “Um solo fértil não só melhora a produção de alimentos, mas também ajuda a prevenir a erosão e degradação do solo, garantindo assim a sustentabilidade produtiva”. Paulo Sanchez, que ministra a disciplina de Agronegócio para os cursos de Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica, concorda com a ideia de que o Brasil é o celeiro do mundo por diversos motivos como o tamanho de seu território e a qualidade de terras agricultáveis. Porém, a produção brasileira precisa de fertilização para correção do solo. Ele conta que “os nutrientes dos fertilizantes acabam indo para o fruto. Então toda vez que tem uma colheita, aqueles ingredientes/nutrientes são retirados do solo e vão direto para mesa do consumidor”. Sendo assim, “periodicamente e sistematicamente é preciso ir repondo esses nutrientes no solo”.
Devido ao conflito entre Ucrânia e Rússia surgiu um debate sobre a concentração da oferta de fertilizantes. Renci, que é doutora em Agronomia, explica que apenas quatro países respondem por aproximadamente 80% da produção mundial de fertilizantes: Canadá (32%); Rússia (18%); China (12%) e Belarus (18%). Em 2021, o Brasil importou aproximadamente 12,8 milhões de toneladas de cloreto de potássio (32,6% do Canadá; 28,2% da Rússia e 18,7% de Belarus). “A Rússia sempre foi um importante fornecedor de fertilizantes para o Brasil e nos últimos anos a demanda por fertilizantes cresceu muito. Neste cenário, 23% dos fertilizantes importados pelo Brasil vem da Rússia, a China representa 14% das importações.”
“Não existe um monopólio. Ocorre que alguns países, por conta das características de seus solos, são mais abastados de fontes minerais, facilitando a extração, produção e a venda de fertilizantes”, acentua Paulo Sanchez. Ele ressalta que, não deixando de lado as questões ambientais, produzir esses fertilizantes é uma moeda e esse material gera divisas, riquezas para esses países. Já Patrícia Renci, comenta que o mercado mundial é de 100 milhões de toneladas. “Os fertilizantes nitrogenados são os mais exportados na Rússia; no Canadá a produção de potássio se destaca e a China concentra suas exportações em potássio, também exportando nitrogênio em menor proporção”.
“Devido ao comércio internacional e questões de acordos comerciais, grande parte das importações vem dos russos”, explica Sanchez. Segundo ele, o Brasil também produz fertilizantes, mas a quantidade é muito pequena em relação à necessidade. “O Brasil não é autossuficiente na produção, muito pelo contrário, o que ele produz aqui não consegue nem nas melhores condições atender a sua demanda. “Ele comenta também que a Rússia é um potencial fornecedor principalmente de potássio. “90% do que o Brasil consome de potássio é importado, ou seja, a gente fica refém dessa importação.”
Como a guerra na Ucrânia pode afetar o agronegócio no Brasil?
“É preciso salientar que coincidiu com a questão da guerra, um câmbio desvalorizado da nossa moeda. O dólar estava muito mais alto, e isso impacta nas questões de custeio de produção”, explica Sanchez. Ele exemplifica essa situação usando a imagem de um produtor que eventualmente pagava 50 dólares em um saco de fertilizante. “Foi projetado por ele, um custo de produção para aquela lavoura. O dólar estava a R$ 3,50 Então ele tinha um panorama na cabeça. Com as questões de mercado, a cotação do dólar atingiu patamares de R$ 5,50. Aquele custo de produção que estava embasado mudou no meio do caminho”.
Sanchez segue com seu exemplo, “imagina você jogando uma partida de futebol e depois do intervalo, na volta, mudou a regra. Você já está no jogo, não tem como você voltar a trás. Então a produção não pode parar. Muitos produtores seguiram o plano, porém esse custo aumentou demais.” Ele avalia que seria impossível evitar que o aumento de preços chegasse à mesa do consumidor. “É óbvio que o consumidor final iria sentir esse reflexo. Então muitas pessoas até acabam jogando, de má fé, a culpa no agronegócio. A carne ficou cara porque o boi tem que comer ração. Ela é feita do milho que foi produzido nesse alto custo. Então é uma bola de neve, um efeito dominó”.
Por conta da posição adotada pela Rússia na guerra, o país sofreu algumas sanções, uma mudança no meio do jogo. Por outro lado, a política externa brasileira optou pela neutralidade. Nosso país fez um jogo político, na minha opinião, bastante inteligente, no sentido de estreitar o contato com a Rússia. Então o fornecimento para o mercado brasileiro foi mantido”. Essa fala de Sanchez vai ao encontro da ideia do presidente da CropLife Brasil, Christian Lohbauer apresentada na palestra “Guerra e Segurança Alimentar Mundial”. “O Brasil depende 90% de fertilizantes importados. O país tem interesses, e não amizade. Tem que manter a neutralidade. A diplomacia tem que estar acima de qualquer figura política.”
Para Sanchez, enfrentamos uma onda de desespero e alguns países ficaram sem abastecimento de fertilizante, por terem tomado partido. Segundo ele, apesar da oscilação de preço, nossa produção não foi muito afetada. “Na minha opinião foi muito mais um stress do mercado. A amônia por exemplo que é utilizada como fertilizante era comercializada aí a 2.500 dólares a tonelada, foi para 5.500. Mas foi algo sazonal.” Ainda segundo ele, os negócios começaram a melhorar quando houve o entendimento da situação. Aquele fervor do momento esfriou, o cenário se equalizou e os preços baixaram. “Aquela alteração de valores, no cenário Brasil, foi muito mais um medo do mercado, do que de fato aconteceu”, aponta Sanchez.
O futuro preocupa?
Apesar de não ter ocorrido a falta de insumos para a produção brasileira, o momento requer monitoramento. Segundo Sanchez, todos os recursos são finitos. Em um período de guerra, são registradas baixas com várias pessoas saindo do mercado de trabalho. “Sem a força de trabalho, a produção acaba ficando escassa e isso acaba aumentando os custos e diminuindo a produção, que demanda não só de tecnologia, mas também de mão de obra humana.”
Renci reforça que a Rússia é a segunda maior produtora e exportadora de nitrogênio (obtido a partir do gás natural) do mundo. Além disso, os russos possuem minas abundantes de outros dois minerais importantes, o fósforo e o potássio. “O Brasil vem se destacando no agronegócio, batendo recordes de produção nos últimos anos. Entretanto, a demanda por fertilizantes continua alta. Portanto, a guerra ainda pode influenciar diretamente no aumento dos custos de produção das culturas”, opina Renci. Para Sanchez, o Brasil conta com mão de obra, clima e solo de qualidade, além de produtores com expertise, mas a guerra preocupa. “O Brasil é extremamente dependente de fertilizantes de outros países, e isso gera preocupação nas tomadas de decisão e também numa perspectiva de futuro.” No fim de julho, representantes da Rússia e da Ucrânia assinaram um acordo na Turquia para a retomada da exportação de grãos através do Mar Negro. “Hoje, há um farol no Mar Negro. Um farol de esperança. Farol de possibilidades. Um farol de alívio, em um mundo que precisa disso mais do que nunca”, disse Guterres para a rádio francesa RFI. Discutido desde abril, o acordo representa uma esperança para a crise alimentar, uma vez que a Ucrânia está entre os principais exportadores de grãos do mundo, fornecendo mais de 45 milhões de toneladas anualmente ao mercado global. O acordo, segundo o secretário-geral da ONU, “trará alívio para os países em desenvolvimento à beira da falência e as pessoas mais vulneráveis à beira da fome. […] Desde que a guerra começou, venho destacando que não há solução para a crise alimentar global sem garantir acesso global total aos produtos alimentícios da Ucrânia e alimentos e fertilizantes russos.”