‘Pensar e repensar Sorocaba’: Livro demarca posição contra-hegemônica para a história da cidade
Por João Torres (Agência Focs – Jornalismo Uniso)
Obra produzida por 17 pessoas conta com rigor científico e análise sob viés marxista sobre uma Sorocaba construída pelos povos indígenas, mulheres trabalhadoras e comunidade negra
Da metade do século XX até a primavera de 2024, Sorocaba teve sua história contada majoritariamente de uma única e colonialista maneira: município rico nascido a partir das bravuras dos bandeirantes e de uma industrialização graças a homens empreendedores. Mas em setembro passado, no 370° aniversário da cidade, a historiadora Bruna Bengozi e o historiador Pedro Carvalho, junto do professor Cícero Santos, lançaram o livro Pensar e Repensar Sorocaba: uma visita crítica à história da cidade pela editora sorocabana Cubīle. Trata-se de uma coletânea de 13 textos escritos por pesquisadores, professores e artistas que marcam posição, munidos de fatos históricos e do rigor científico, para uma crítica à história europeizada da cidade.
Como forma de divulgar o trabalho e dar visibilidade para essa leitura da história da cidade, os organizadores foram convidados pela coordenação do curso de história a participar do encerramento da Semana de História na Universidade de Sorocaba (Uniso). O encontro aconteceu na sexta-feira (1°) no anfiteatro da biblioteca Aluísio de Almeida. Mais do que a divulgação do trabalho, Bruna, Cícero e Pedro significaram esperança e fôlego aos estudantes e professores presentes que os ouviam.
“Produzir esse livro é uma resposta à crise que vivemos. É uma forma de nos sentirmos vivos e latentes diante de um levante neofascista, neoliberal e bolsonarista na cidade”, apresenta Cícero. Formado em Letras pela Uniso, o professor também é criador da editora Cubīle ao lado de Pedro. Juntos tiveram a ideia de produzir o livro ao mesmo tempo que pensaram na criação da editora. Os dois moram no centro de Sorocaba, em uma casa cujas janelas permitem ver um horizonte preenchido pela estátua do bárbaro bandeirante Baltazar Fernandes e do Mosteiro de São Bento. “Olhando para esse prédio tão icônico, pensamos que deveríamos fazer algo sobre. Era engraçado ver aquele prédio ali na frente que está com uma reforma infinita”, conta Cícero.
No relógio ainda faltavam 10 minutos para o horário estipulado para início do encontro, e Larissa Girardi Losada já era a primeira pessoa presente no local. Mestranda em museologia pela Universidade de São Paulo, a porto-alegrense, que está na etapa final da sua dissertação, teve acesso ao livro apenas um mês antes da finalização do mestrado, mesmo assim ela atesta que conseguiu somá-lo à pesquisa. “Acrescentou muito com uma visão crítica de compilados de informações muito relevantes para pensar uma história a contrapelo do que a gente imagina que Sorocaba pode ser”. Larissa também é formada em história pela Uniso e explicou como o livro contribui socialmente para Sorocaba. “Propor formas de agir coerentes com as realidades e com as memórias que a gente entenda que são importantes para não perpetuar mais narrativas hegemônicas, excludentes e extremamente problemáticas que levam ao ocultamento, silenciamento e subjugações históricas”.
A obra faz questão de combater de silenciamentos a apagamentos na história escrita que impregna o senso comum da população sorocabana bem como de instituições que carregam nomes de falsos herois. Bruna, uma das organizadoras do livro, comenta que a violência que foi utilizada para construir a cidade dizimando vidas indígenas que já estavam ali antes de colonizadores europeus chegarem, é a mesma utilizada no apagamento da história das mulheres e do povo negro.
“Ele (o livro) dialoga com o jornal Cruzeiro do Sul, mostrando de que forma tratavam as mulheres negras. A gente sabe que a mídia está a serviço de uma classe”, expõe a historiadora. O veículo é analisado criticamente na coletânea pelo texto escrito pela historiadora Kamila Vigarani, também formada na Uniso, em 2022 – mártires e silenciadas, do lar à rua: uma análise das representações femininas do Jornal Cruzeiro do Sul, entre os anos de 1903 e 1907.
O trabalho por ressignificar a memória sorocabana também passa por contar a história daqueles que resistiram às truculências do “progresso” da cidade. João de Camargo, importante liderança negra religiosa e política de Sorocaba da primeira metade do século passado, foi resistência ao projeto de branqueamento e higienização social conduzido pelos indesejados da “Manchester Paulista”. Esse é o tema do texto do historiador Wellington Ataíde intitulado o Papa Negro de Sorocaba: João de Camargo entre disputas e memórias.
Os organizadores consideram que o que vem se perpetuando em Sorocaba é “uma monocultura historiográfica majoritariamente masculina, impregnada de colonialismo e de uma concepção patriarcal e racista de mundo”. E ao deparar-se com o presente “o plano do atual governo não tinha uma linha sobre cultura”, critica Cícero, se referindo ao programa político apresentado por Rodrigo Manga (Republicanos) na recente eleição municipal.
Em entrevista com a vereadora Fernanda Garcia (PSOL), a estudante de jornalismo Ana Carolina Cirullo apurou que a previsão de orçamento destinada ao setor da cultura para 2025 em Sorocaba será de apenas 0,38%, aproximadamente R$15,8 milhões, da receita total de R$4,6 bilhões da Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) do próximo ano. Segundo Ana, esse número está em desacordo com o próprio Plano Municipal de Cultura, que em uma de suas fases de elaboração em 2016, teve como meta estabelecida “promover o aumento progressivo de 0,2% do repasse do orçamento da prefeitura para a Secult, até se atingir o mínimo 2% nos primeiros 6 anos desta lei (11326/2016)”.
O negacionismo e boicote à cultura promovidos pelo poder público sorocabano inviabiliza a garantia de direitos de acordo com Pedro. “Temos que partir do pressuposto de pensar a história e a memória como direitos. Elas nos levam para outro direito que é o acesso à cidade. Quando eu não tenho uma reflexão crítica sobre a cidade, isso é um direito que está sendo tirado de mim”, afirma.
O livro
A obra está dividida em três capítulos: formação e consolidação: Sorocaba, cidade bandeirante; modernização e industrialização: Sorocaba, “Manchester Paulista” e existências e insurgências: Sorocaba, cidade conservadora. O prefácio é do historiador Tiago Hideo B. Watanabe e a apresentação é do professor e coordenador do curso de história da Uniso, Walter Cruz Swensson Junior.
O coordenador enfatiza que a coletânea de textos que constroem o livro traz diversidade e a complexidade do processo histórico. “Extremamente importante pela oportunidade, diversidade e por essa abertura para outros grupos, figuras que são excluídas aparecem como protagonistas da história de Sorocaba”.
A gravura Cidade de Sorocaba ilustra a capa, contracapa e orelha da edição. Ao todo, 304 páginas construídas ao longo de dois anos e meio de trabalho coletivo demonstram um novo ciclo da historiografia sorocaba e ressignificam o desenvolvimento do município que passou e passa por uma classe trabalhadora de diversas raças, gêneros, religiões e culturas.
Pesando um pouco mais de 500g, a edição carrega o peso de, além de contar sobre a cidade de Sorocaba, também abordar histórias da região que foram construídas da mesma maneira, como todo o Brasil. Por exemplo, o Quilombo do Cafundó, localizado na área rural de Salto de Pirapora, é trazido ao livro pelo cientista social Matheus Henrique Hilário dos Santos Fagundes, em texto que está presente nas últimas páginas da obra.
“O Cafundó tem esse papel de demonstrar para a sociedade da região de Sorocaba como a gente pode ter uma existência mais saudável e uma existência que não é vinculada à morte, não é essa ideia que a gente tem que viver, vai trabalhar e vai morrer. A gente tem que viver, ter respeito à comunidade, às pessoas, ao chão que se pisa e o Cafundó é apresentado como uma das diferentes formas de existir que a comunidade negra na região tem”, explica Cícero.
No fim da noite, diversos estudantes foram à mesa que cedia espaço para a compra do livro e outros títulos publicados pela editora Cubīle. O encontro se estendeu até o último livro ser autografado por Bruna, Cícero, Pedro e Walter, que também foi procurado pelos presentes para deixar uma dedicatória em cada edição adquirida.