Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais
Por João Torres (Agência Focs – Jornalismo Uniso)
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 a carga horária de trabalho no Brasil é de 44 horas semanais. Fim da escala 6×1 e redução da jornada de trabalho é expectativa entre a classe trabalhadora brasileira

Foi nas férias da escola, quando tinha oito anos, que Izadi de Almeida trabalhou pela primeira vez. Morava na zona rural de Salto de Pirapora, cidade do interior de São Paulo, seus pais tinham um sítio e 14 filhos, viviam da agricultura. Seu primeiro trabalho na roça foi raleamento de algodão. Para isso, devia-se esperar um pouco mais de 20 dias após uma máquina despejar sementes pelo solo, assim Izadi ia “tirando os pézinhos e deixando só os mais fortes para crescer bonito”, conta.
“Quando estava grávida pela primeira vez, ainda trabalhava na roça, debaixo de muito sol, arrancando quatro tarefas de feijão”. Izadi relembra das histórias enquanto falta uma hora para às quatro da tarde, horário que entra para trabalhar. Hoje, aos 60 anos, é auxiliar de cozinha em uma rede de fast food de frango frito 100% delivery, em Sorocaba, mas na verdade faz de tudo no local junto da sua colega de trabalho Lurdinha. Abrem a loja, limpam o ambiente, ficam no caixa, atendem pedidos, temperam e empanam os frangos, cozinham, montam os pedidos, fecham o caixa, somam o valor diário, limpam o local de novo e fecham. Somente as duas. Tudo isso seis dias na semana, até meia noite.
Izadi folga nas segundas-feiras, dia que pode passar com sua filha, Anna Júlia de Almeida, que também só folga no mesmo dia. Anna tem 25 anos e é auxiliar de enfermagem, trabalha seis dias na semana, entra às sete da manhã e sai uma da tarde. Na sua casa é a primeira a levantar da cama, às cinco. Às seis, seu marido acorda e prepara o filho para levar para a creche, que é próxima ao seu trabalho, que é próximo a casa deles.
A família mora em um condomínio de casas CDHU no bairro Wanel Ville. Há 31 blocos com 16 apartamentos distribuídos em quatro andares, ou seja, 496 lares. “Aqui a grande maioria trabalha na escala 6×1”, destaca Anna. Em feriados como o desta sexta-feira, 15 de novembro, as crianças do condomínio aproveitam o dia sem aula para serem crianças e brincarem até quando o sol permitir. Elas talvez não saibam, mas a data pode ser um marco para o futuro delas. Em todo o país acontece o primeiro ato pelo fim da escala de trabalho que subjuga seus pais a não terem tempo com elas.

Anna acaba de voltar do trabalho e precisa subir dois lances de escadas para chegar até o apartamento 12 do bloco nove. Sua casa. Quem te espera do lado de dentro é sua mãe e seu filho. Seu marido, Lucas Souza Orfãos, deveria estar ali também, porque é feriado, e ele não ia trabalhar no feriado, mas um dia antes avisaram que ele teria de ir trabalhar.
O plano do casal para o feriado era outro. Era ir para o centro da cidade, na principal praça de Sorocaba. Lá estavam reunidas por volta de 200 pessoas, e não era para alguma missa na catedral. Exigiam o fim da escala 6×1. Anna já tinha se idealizado com cartazes ao lado do marido e do filho nos ombros do pai. Não aconteceu, porque eles tiveram que trabalhar. Izadi gostaria de ter ido também, mas ela teve que ficar com o neto, para a mãe e o pai poderem ir trabalhar. A creche não abre no feriado, mas as empresas abrem. O trabalho nunca pode parar.
“Quando eu acordo eu penso: ‘De novo? Parece um ciclo sem fim’. Parece que você nunca sai do serviço. Tem dia que chego e olho para a tela do computador e parece que nem sai daqui. A tela do computador é igual todo dia. E quando eu tô de folga eu lembro que amanhã vou trabalhar”. O sentimento de Anna é o mesmo de sua mãe que quando chega em casa do trabalho, toma um café, liga a televisão e quando percebe já são duas horas, “vou dormir… aí acordo 11h e daqui a pouco já tenho que trabalhar de novo. Dá tempo de nada, não dá”.
A exaustão, a falta de tempo e a impossibilidade de viver a vida não compensam o quanto ganham. Izadi e Anna fazem parte dos 70% de brasileiros que recebem de um a dois salários mínimos, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. Porém, Izadi não é registrada pela empresa que trabalha. Esta é a terceira vez que a trabalhadora está neste trabalho, e todas as vezes ela entrou como freelancer, modelo de trabalho que a pessoa recebe por horas trabalhadas.
“Eu fiz as contas, eu não recebo por hora trabalhada. Não tenho um salário fixo, tem mês que eu recebo menos. Não tenho nenhum benefício, é só o salário seco”. Izadi não vê sua chefe há cinco meses, o único contato que tem com ela é por mensagem. “Tem mês que ela atrasa meu vale, ela não paga hora extra, se trabalha em feriado não paga 100%, não paga”, indignada, Izadi decide que vai faltar no próximo domingo para poder aproveitar o único domingo de folga da Anna, e o tempo com seu neto. “É Lorenzzo Davi Almeida Orfãos, com dois Z mesmo, foi ela que escolheu”, Anna aponta a mãe sorrindo.
Lolo, como carinhosamente chamam a mãe e a avó, tem quatro anos e também já sente os impactos de sua mãe trabalhar seis dias e folgar um. É normal durante as noites o filho perguntar à Anna, “você está de folga agora, mamãe?”. Ele entende que quando Anna está em casa é o dia que pode aproveitar a mãe e o pai. Dificilmente Lorenzzo acorda e os pais estão em casa, o próximo domingo será um desses dias.

“A escala 6×1 para mulher é mais sofrido. Para todas mulheres que são “donas de casa”, Izadi ainda completa que ou aproveita a folga para limpar a casa ou para passear e deixar a casa um “lixão”. O censo do IBGE de 2022 aponta uma realidade mais do que conhecida por Izadi, mais de 40 milhões de mulheres exercem mais uma jornada de trabalho em casa e sustentam financeiramente o lar. A trabalhadora cuidou de cinco filhos sozinha e nunca deixou faltar nada. “Lembro quando eu tinha seis anos e morava no sítio. Lembro de toda necessidade que a gente passou. Eu não queria que meus filhos passassem por isso. Eles comiam tudo que queriam, eu me matava mas eu comprava tudo”, recorda.
Lucas deixou a escala 6×1 há uns oito meses, atualmente é auxiliar de produção em uma empresa de produtos de limpeza, mas também é encarregado e faz de tudo um pouco. No Brasil ser “auxiliar” em algum setor nunca é só auxiliar. “Tinha época que eu saía às oito da manhã e chegava meia noite em casa. Eu saía, a Anna e o Lo estavam dormindo, eu chegava e eles estavam dormindo”.
O fim da escala 6×1 é assunto na família e há esperança de que o filho não precise passar pelo o que os pais e avó passam. “Tudo que é para benefício do trabalhador falam que o país vai quebrar, mas eu sei que vai dar certo. Se não der certo pra mim, vai dar certo pro Lorenzzo, e pra mim tá ganho”, afirma Anna.
Depois de quase cinco décadas da cantora Elis Regina ter cantado pela primeira vez que “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”, há real possibilidade de a vida de milhões de brasileiros ser diferente da vida que seus pais tiveram. Se Anna trabalha o tanto quanto Izadi, ferve no seio da família que Lorenzzo possa desfrutar a vida de maneira diferente.