Retrospectiva Negra 2024
Começamos o ano com uma notícia triste para a comunidade negra sorocabana: a enchente que destruiu grande parte do acervo e da estrutura da Igreja de João de Camargo (https://www.joaodecamargo.com br/). Além da dor pelo ocorrido, e falo dor porque enquanto um defensor e frequentador da capela, foi o que (assim como muitos outros) senti, tivemos que ver o extremo descaso da prefeitura e da mídia. É de conhecimento de todos a preferência religiosa do prefeito de nossa cidade, mas o estado não é (ou deveria ser) laico? Os governantes não têm que governar para “todos”? Não diminuindo a extrema importância do hospital do GPACI (Grupo de Pesquisa e Assistência ao Câncer Infantil), mas a capela de João de Camargo é um patrimônio cultural tombado, sendo um dos poucos pontos de territorialidade negra que ainda não foi consumido pela especulação imobiliária.
Em relação a mídia, a chuva que afetou o GPACI foi a mesma que quase derrubou a capela, mas a divulgação foi incomparavelmente menor. O GPACI estava nos jornais todos os dias (por vezes com mais de uma aparição), a situação da capela de João de Camargo começou a ser mostrada dias depois. Enquanto o GPACI recebia a visita do governador do estado com a promessa de repasse de milhões de reais do governo e doações de grande parte da classe rica da cidade, o voluntariado para a capela foi todo no boca a boca e via WhatsApp, com pessoas fazendo mutirões para arrecadação de rodos, vassouras, sacos de lixo e mão de obra para a limpeza e recuperação das imagens e do espaço físico do local.
Ainda nos primeiros meses do ano, Sorocaba/SP e a comunidade negra sofreram mais impactos: as mortes de José Marciano e Ondina Seabra.
“Sêo Marciano” como era conhecido, foi um dos fundadores do Clube 28 de Setembro em 1945. Aos 97 anos, ele partiu deixando um legado enorme, principalmente o clube afro-sorocabano que foi fundado por operários da Estrada de Ferro Sorocabana para que os negros, que eram proibidos pelos brancos de frequentarem os clubes da cidade, pudessem ter seu espaço cultural.
“Onda”, como era chamada pelos íntimos, foi a primeira mulher negra professora e diretora de escola que a cidade teve. Repito aqui as palavras que eu disse em sua homenagem, no discurso como orador da minha turma de jornalismo que colou grau uma semana após sua morte:
“Antes de iniciar o discurso, já que estamos em uma casa de educação, eu gostaria de dedicar esta cerimônia à memória da Senhora Ondina Seabra, a primeira professora negra de Sorocaba, que faleceu aos 102 anos, na semana passada. Onde você estiver professora, receba nosso agradecimento por tudo que você fez pela educação, a sociedade sorocabana e ao nosso movimento negro. Você sempre será nossa Griô”.
O discurso completo pode ser visto e ouvido aqui: https://www.instagram.com/reel/C4q6i9lOJUW/?igsh=MW93cXVwamwwNHY4Mw
2024 também entrou para a história…
O portal Alma Preta foi a primeira mídia negra independente credenciada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) a participar das Olímpiadas. Nossas atletas pretas Rebeca Andrade (ginástica), Beatriz Souza (judô) e a dupla Ana Patrícia e Duda Lisboa (vôlei de praia) fizeram bonito e trouxeram o ouro para casa. E falando em Olimpíadas, 2024 foi marcado também pelo centenário do primeiro atleta negro brasileiro a participar do evento: Alfredo Gomes.
Tivemos Kamala Harris, uma mulher negra, disputando as eleições dos EUA. E não deixando de falar sobre apagamento, muito se falou de Kamala, mas deixaram de lado Shirley Chisholm, a primeira mulher negra na história do Congresso dos EUA e cujo nascimento completou 100 anos em 2024. Ainda na política, tivemos o triste episódio envolvendo os ministros negros Aniele Franco e Silvio Almeida, culminando na demissão dele. Em compensação, sua vaga no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania foi ocupada por uma mulher negra e professora: Macaé Evaristo.
Pela primeira vez tivemos duas ministras negras, Edilene Lôbo e Vera Lúcia Araújo, em uma mesma sessão plenária do Tribunal Superior Eleitoral. O mesmo tribunal emitiu uma informação para franzirmos nossas testas: 42 mil candidatos alteraram a autodeclaração racial, de branco para pardo nas eleições… que coisa né?
Nesse ano também:
- Perdemos algumas figuras importantes como o baixista jamaicano Aston Barrett, um ícone do reggae, Louis Gossett Jr., o primeiro homem negro a conquistar um Oscar e Quincy Jones, famoso produtor musical dos EUA;
- Lembramos dos 50 anos da morte do poeta brasileiro Solano Trindade. O centenário da morte de Nilo Peçanha, o primeiro presidente negro do Brasil. Os 110 anos de nascimento de Abdias do Nascimento e de Carolina Maria de Jesus (sim!! Eles nasceram no mesmo dia e ano, incrível né?). E os 50 anos de fundação do Ilê Aiyê, famoso bloco afro do Brasil;
- A cantora e deputada negra Leci Brandão chegou aos 80 anos de idade;
- Vimos o presidente de Portugal reconhecer a culpa de seu país no massacre e escravização de milhões de indígenas e pessoas de origem africana;
- Karoline Bezerra se tornou a primeira quilombola promotora de justiça do Brasil;
- Vibramos com os professores doutores Gilmar Pereira da Silva (o primeiro reitor negro da Universidade Federal do Pará) e Juarez Tadeu de Paula Xavier (primeiro negro nomeado diretor da FAAC da UNESP de Bauru/SP).
- A Unicamp formou a 1ª turma do curso de medicina com cotas raciais.
- Termina a Década Internacional dos Afrodescendentes, estabelecida pela ONU em 2015, para promover à inclusão, o combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância.
- Através de uma parceria entre Movimento Negro Unificado e o Instituto de Gestão Social e Cidadania (IGESC) ocorreu uma homenagem a lideranças negras de Sorocaba/SP (e tem matéria sobre isso aqui na Focs. Bora ver depois? https://focas.uniso.br/index.php/2024/10/15/liderancas-do-movimento-negro-sao-homenageadas-em-sorocaba/).
- Foi o primeiro ano em que o Dia da Consciência Negra foi um feriado nacional, e os Correios lançaram um selo comemorativo em alusão à data.
45 anos do NUCAB, o Núcleo de Cultura Afro-Brasileira de Sorocaba
Criado em 1979, com o nome de ICAB (Instituto de Cultura Afro-Brasileira), o Núcleo de Cultura Afro-Brasileira (NUCAB) é um dos mais antigos e importantes dentro dos movimentos negros de Sorocaba. Fundado por um grupo de jovens (dentre eles Ana Maria Souza Mendes, Jorge Narciso e Bernardino Antonio) nas dependências do Clube 28 de Setembro, com o intuito de defender as africanidades, foi proposta “à Diretoria Executiva da Sociedade, a criação de um organismo dentro dela, que melhor acolhesse e desse voz aos mais jovens”, conforme conta Ana Mendes (2021, p. 12), que integra o movimento desde seu início. Dentre as atividades do ICAB que se destacaram, uma muito importante foi a Fundação Cafuné, que conseguiu bolsas de estudos para estudantes negros, sendo considerada a “mãe” do programa social Prouni. Sobre isso, Ana Mendes (2021, p. 12) conta que:
“Dentro do ICAB, surgiu a FUNDAÇÃO CAFUNÉ – Caixa de Financiamento ao Universitário Negro – iniciativa absolutamente necessária à época, posto que anterior a qualquer programa de governo, e que logo no início encontrou duas instituições parceiras na cidade: a Fundação Dom Aguirre, mantenedora da então Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Sorocaba, e a Associação Cristã de Moços, a ACM, mantenedora do curso de Educação Física, então único na cidade.”
Ainda segundo a professora Ana Mendes (2021, p. 13), a mudança de ICAB para NUCAB ocorreu:
“quando a Universidade de Sorocaba, unindo as faculdades então mantidas pela Fundação Dom Aguirre, surgiu: por admitir-se de caráter comunitário, passou a conter o ICAB, a ela cedido pela SCB 28 de Setembro que, na neoestrutura, passou à condição de Núcleo de Cultura Afro-Brasileira – o NUCAB.”
Atualmente, devido a uma mudança estrutural (reestruturação administrativa de organograma), o Nucab deixou de ser um núcleo de extensão da Universidade de Sorocaba (Uniso), passando a ser um braço do curso de história que atualmente tem como coordenador o professor Walter Swensson. Além dele, o Nucab é coordenado pela professora Gleice Barbara Marciano, auxiliada pelos professores Ademir Barros dos Santos (coordenador da Câmara de preservação cultural) e Eloisa Gonçalves Lopes (coordenadora da Câmara de Literatura).
2024 foi marcado também pela comemoração dos 10 anos de projeto Iorubrá, realizado pelo Sesc. Esse ano, além da promoção de tributos às figuras que representam as negritudes sorocabanas, o evento que ocorre durante todo o mês de novembro, contou com três intervenções nucabianas: a) Outros negros na história do Brasil, b) Tributo à negritude sorocabana e c) Territórios negros em Sorocaba.
Mas apesar das coisas legais que ocorreram, 2024 fechará como mais um ano mortal para a população negra. Há tempos não víamos uma polícia militar tão violenta e assassinando tantas pessoas negras em suas operações. Comparado com 2023, o número de pessoas que morreram em ações da PM aumentou em 83%.
Vimos violência policial em operações no litoral paulista, numa adega em Ribeirão Preto/SP e até em um velório em Bauru/SP. Um jovem foi morto com oito tiros pelas costas em um minimercado em São Paulo/SP, teve briga por causa de corrida de mototáxi, um rapaz sendo arremessado de uma ponte durante uma batida policial entre outros casos. E já que estamos falando em violência contra o povo preto, deixo como dica a recém lançada série Os 4 da Candelária, uma ótima reflexão sobre algo que apesar de ter acontecido há mais de 30 anos, representa o que ainda se vê nos dias de hoje.
E para fechar, nossa cidade de Sorocaba/SP foi manchete nacional após uma viatura atropelar um rapaz e ir embora sem prestar nenhum socorro.
BASTA! Parem de nos matar!
Encerro essa última coluna de 2024 agradecendo a vocês leitores que me acompanharam nessa jornada, e desejando um feliz natal, uma boa virada de ano e que em 2025 possamos ter paz em nossas vidas, com leituras ainda mais afetuosas.
Gratidão!
SERVIÇO
Conheça o Nucab (Núcleo de Cultura Afro-Brasileira de Sorocaba):
Gleice Marciano: gleicebama@gmail.com.
Eloísa Gonçalves: elopes802@gmail.com
Ademir Barros: ademirmulato@gmail.com
Instagram: @nucabfala.
Facebook: https://www.facebook.com/NucabFala.
Site: https://nucabfala.wixsite.com/nucabfala.
Email: nucabfala@gmail.com.br.
Livro: https://editora.uniso.br/editora/catalog/view/11/9/49.
