O jornalismo analógico de O Chamado (2002)
Quando se assiste a um filme, há certos detalhes que moldam tudo. Um deles, que muitas vezes passa despercebido, é a profissão dos protagonistas. Em O Chamado, filme de 2002, a heroína, Rachel Keller, é jornalista. E isso é muito significativo não só para o desenrolar da trama, como também para a visão de um jornalista, ou estudante de jornalismo, que assiste ao filme.
Isso acontece por dois motivos. O primeiro é porque a profissão de Rachel, os métodos de seu ofício são usados na investigação dos fenômenos paranormais do filme. A trama começa com a misteriosa morte de sua sobrinha, e o pedido de sua irmã de que investigue o caso, dizendo: “Não é isso que você faz?” A partir desse pedido, Rachel descobre uma fita VHS com um vídeo curto e sinistro que amaldiçoa quem o assiste, uma maldição carregada de visões perturbadoras, pesadelos e lesões pelo corpo, que culminam com a morte da pessoa depois de sete dias. Rachel, a princípio cética e curiosa, assiste ao conteúdo da fita e imediatamente começa a sentir os efeitos, que começam com uma ligação telefônica anunciando a morte próxima.
A partir daí, a vida de Rachel depende da descoberta da verdade. É uma extrapolação interessante da suposta “vocação” do jornalista, essa ânsia infindável por respostas. No início, a personagem sabe muito pouco, tendo apenas o conteúdo da fita, e é por ele que ela começa, descobrindo que cada cena do vídeo fornece pistas de uma história trágica. Essas pistas se revelam no próprio fazer jornalístico de Rachel, numa pesquisa com visitas a bibliotecas e arquivos, consultas a especialistas em audiovisual, buscas por pessoas próximas às vítimas da tragédia etc. Tudo isso é do ofício do repórter. A diferença é que Rachel não está escrevendo uma reportagem, mas usando ferramentas da sua profissão para descobrir uma forma de salvar a si e a pessoas que ama, que também tiveram contato com o conteúdo da fita.
Duas cenas e um diálogo são particularmente demonstrativos disso. Uma cena acontece quando Rachel vai atrás do pai da menina envolvida na tragédia, e ele sumariamente diz que não tem filha. Ao sair da casa do homem, porém, ela se depara com um balanço pendurado numa árvore, o que indica que, em algum momento, uma criança viveu naquela casa e que, portanto, o homem pode estar mentindo. Outra cena mostra a importância do acaso numa investigação, seja jornalística ou de outra natureza. Nela, o parceiro de investigação de
Rachel tem um acesso de fúria e derruba pequenas bolinhas no chão, que vão se juntando em um ponto específico do assoalho. É a partir da percepção desse fenômeno que os dois descobrem um desnível no piso, que esconde a localização do poço onde a tragédia teve seu ápice. Nessas duas cenas, vemos o “tino” de jornalista de Rachel, sua capacidade de perceber o que não é dito e de ver além do óbvio.
O diálogo que demonstra o papel do jornalista na história é ainda mais interessante. Nele, Richard Morgan, pai da menina alvo do evento trágico, diz para Rachel: “O que os repórteres querem? Pegam a tragédia de uma pessoa e forçam o mundo a revivê-la. Espalham-na feito doença.” Em seguida, ele complementa: “O que você acha que sabe? Pois deixe isso em paz.” Essas falas do sr. Morgan mostram algumas coisas. E primeira é a visão que muitas pessoas têm do trabalho do jornalista, sobretudo pessoas envolvidas em eventos que chamam a atenção da imprensa e do público, uma visão de alguém bisbilhoteiro. Outra, é o inevitável dilema ético da profissão: ao tornar pública uma história, até que ponto não se está propagando uma desgraça, ou pelo menos contribuindo para uma? Nesse sentido, o desfecho do filme mostra que a intenção de Samara, o espírito da menina assassinada, era justamente a de que sua história fosse ouvida. Nesse sentido, a decisão consciente de Rachel de fazer uma cópia da fita significa participar ativamente da propagação de uma maldição. Ou seja, a jornalista Rachel Keller assina sua “reportagem”, metaforicamente, tornando-se ao mesmo tempo contadora e objeto da história, como muitas vezes acontece com repórteres.
O outro ponto interessante de se notar no filme é como ele funciona como uma cápsula do tempo do fazer jornalístico e de pesquisa numa era anterior aos avanços digitais.
No filme, há computadores, mas em 2002 a internet ainda estava longe de abrigar as facilidades que há hoje. Não havia smartphones, acervos digitais, inteligências artificiais etc. Isso faz com que a pesquisa de Rachel seja majoritariamente analógica. Os sites de busca são usados, mas a maior parte da investigação se dá em bibliotecas, arquivos e entrevistas. Seus instrumentos são editoras e copiadoras de VHS, telefones que só fazem ligações e livros. É por meio deles que ela descobre um farol escondido no vídeo, encontra a localização do farol e, a partir daí, entra em contato com a história de Anna Morgan, mãe da menina Samara. A investigação dura exatos sete dias, justamente o tempo que a maldição leva para se concretizar. Nos dias atuais, algumas consultas a uma inteligência artificial poderiam lhe dar as informações de que precisava em poucos minutos.
O Chamado usa muito de uma estética chamada “terror analógico”, que utiliza elementos de fitas VHS e afins para compor o horror. O interessante é que o filme também é um documento de um jornalismo analógico, muito pautado na longa busca pela verdade, um jornalismo feito em grandes redações, num mundo que parecia ter mais tempo e andar mais devagar, dando fôlego ao repórter para tecer suas investigações. Hoje, o terror digital, por assim dizer, é a falta de tempo, é o trabalho precarizado, é o burnout, é a reportagem inteira feita em segundos por uma máquina. O que se perde com esse novo jornalismo? Será possível manter o olhar humano, ético e cauteloso nessa nova configuração? Ainda há espaço para olhar treinado, experiência profissional, intuição de jornalista? Teremos mais do que sete dias para descobrir, e com sorte nossa profissão não morrerá no final.

