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Livro escrito somente por autores negros é lançado em Sorocaba

A coletânea foi escrita por homens e mulheres de pele preta, de Sorocaba, de várias partes do Brasil e até do exterior

Rafael Filho (Agência Focs – Jornalismo Uniso)

(Foto: Rafael Filho)

A Minha Pele Preta. Com este título, que leva à reflexão sobre o real pertencimento da própria pele, entre tantas outras provocações e entendimentos, foi lançado em Sorocaba, no mês de maio, um livro totalmente escrito por autores de pele preta.

Até que ponto a minha pele preta é minha? É um dos questionamentos de partida provocados por esta obra. A indagação pode parecer estranha, mas é muito pertinente, tendo em vista que a partir da invasão da África a pele preta passou a ser do outro, no caso, o invasor europeu.

Muitos registros históricos seguiram e a pele preta continuou numa condição rompida com a pessoalidade, se tornou produto de lucro entre mercadores de negros. A minha pele não foi minha, nas mãos dos senhores de engenho ou do capitão do mato. Mesmo após a abolição da escravatura, a minha pele preta não era minha. Era controlada por fatores como a lei da vadiagem e a eugenia. Mesmo hoje, a minha pele preta ainda não é minha, pois os negros não podem ter uma vida sem preocupações e sensação de liberdade, negros são reféns de um dos piores males do mundo: o racismo.

Lançado oficialmente no Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba, o livro foi organizado pelo escritor e pedagogo Manoel Francisco Filho. Segundo ele, a antologia (como é chamada a coletânea de textos) trouxe uma sensação de aquilombamento para aqueles que fizeram parte do processo. “Foi uma grande experiência, ainda mais partindo da nossa cidade, que teve a maior participação em número de autores. É uma satisfação enorme poder estar realizando esta antologia com tantos amigos aqui de Sorocaba”, afirma Manoel. 

Sobre a importância para a representatividade negra, o organizador afirma que o livro propõe uma reflexão sobre diversos pontos de vista, já que a pele preta pode ter tonalidades e experiências diferentes. Para Manoel, “a questão negra aglutina toda essa diversidade. Nós acreditamos que a contribuição deste livro é propor diversos pontos de vista, de reflexão sobre a condição histórica do negro no Brasil”.

 Manoel Filho: “A editora A Arte das Palavras é nova no mercado, mas já está trabalhando muito bem os diversos recortes sociais existentes. Fiquei muito feliz com o convite dela para organizar esta obra, que conta também com dois colaboradores estrangeiros (de Moçambique)” (Foto: Rafael Filho)

Falando sobre o processo produtivo, em relação à seleção dos textos, Manoel conta que foi muito difícil, já que ele recebeu mais de 40 contribuições de autores do Brasil todo. O escritor confidenciou que a ideia foi unir na obra, não somente escritores, mas homens e mulheres dos mais variados recortes sociais, sendo artistas ou não. Ele afirma que o principal critério foi privilegiar primeiro a diversidade. Foram abordados desde temas ligados à sexualidade até a cultura, passando por religiões de matriz africana. “O critério foi tentar agregar o máximo de diversidade nessa produção, para que ela pudesse ser um exemplar representativo e mostrar como as experiências negras são diferentes tanto no Brasil quanto fora dele”, destaca Manoel.

Durante o evento, os visitantes puderam ter acesso a outras obras onde Manoel Filho e escritores negros participaram (Foto: Rafael Filho)

“Estou orgulhoso de estar participando dessa obra. Feliz e honrado porque é o momento da gente poder colocar para fora sentimentos, pensamentos e compartilhar com pessoas que talvez nós não tivéssemos acesso”, conta o funcionário público sorocabano e participante do livro Melquisedeque Luiz da Silva. Segundo Melqui (como é conhecido), a obra é muito importante para o povo preto, justamente por demonstrar que eles não estão sozinhos independentemente de onde estejam. “A dor que bate na zona norte é a mesma que bate na zona leste, na capital e no interior. Ser preto, é ser preto em qualquer lugar do mundo”, ele afirma.

Melquisedeque da Silva: “Acredito que essa crônica que eu pude compartilhar, traz um pouco da minha análise de vida, como observo o mundo na conjuntura atual. Me marcou muito saber que um pouco da minha pessoa será compartilhado com outras, em locais, formas e épocas diferentes. É bacana, enriquecedor” (Foto: Rafael Filho)

Melqui salienta com tristeza, que apesar de toda a riqueza e a história do povo africano, a escravização foi uma ação de desumanização da população preta, sendo necessário um intenso processo de reconstrução. “Essa obra vem mostrar que não somos submissos, não somos uma sub-raça e temos um legado muito forte. Somos africanos em diásporas”, ele conta. Melqui afirma também que essa africanidade traz um legado de solidariedade “com os nossos irmãos e irmãs pretos e pretas e reforça a nossa resistência e resiliência no mundo”.

Fazendo uma analogia com as formas da água, para enaltecer a força do povo negro seja na África ou em qualquer parte do mundo, Melqui pediu para que se imagine o continente africano como um grande espaço de água. “Nós somos águas dentro dele. A água, ela evapora, congela, ela tem várias questões do seu tempo e estado, mas toda vez ela vai voltar. Seja através da chuva, ela vai para o rio, que corre para o mar voltando a ser água. A água é água em qualquer lugar do mundo. Então como ela, somos africanos em qualquer lugar do mundo. Não importa o que aconteça, o tempo, as nossas modificações, continuamos a ser africanos, assim como a água continua sendo água”.

 

Autores do livro e pessoas das mais diversas áreas da sociedade sorocabana estiveram presentes no lançamento de A Minha Pele Preta (Foto: Rafael Filho)

Para o sambista sorocabano Claudio Silva, a participação no livro foi de extrema valia e legitimou uma sensação de pertencimento e de colaboração. “Adentrar por essa seara foi importante para mim por conta de que é uma antologia onde eu contribuo com um poema que denuncia o racismo”, pontuou Claudio. Ele afirma também que a experiência pode se tornar um pontapé para colocar em prática, vários projetos que estão arquivados. “Tenho conteúdos que quero colocar em pauta para ter registros dentro de uma literatura afro-brasileira, utilizando até algumas linguagens de literatura Bantu e Yorubá” contou Claudio.

Claudio Silva: “Apesar de algumas pessoas vincularem, eu não sou escritor, sou um compositor (letrista). Nessa antologia tem diversos modos de escrita, diversas faces e facetas das pessoas que a escreveram” (Foto: Rafael Filho)

O poema de Claudio “Grite feito um demente” faz referência a uma situação ocorrida em 2022, quando a deputada Carla Zambelli perseguiu com uma arma de fogo em punho, um homem negro em algumas ruas de São Paulo. Segundo Claudio, os gritos do homem o salvaram de um possível homicídio. “Eu sempre digo que cada vez que um preto grita ele chama atenção. Porque quando ele não grita, ele sucumbe, morre e vai para a vala anônimo. Acontece igual ao Pato N’Água [sambista negro, morto em 1969] que foi encontrado no outro dia, baleado com dois tiros e ainda com um relatório do IML dizendo que foi suicídio”, pondera Claudio. O sambista conclui reforçando que “se os gritos não forem ouvidos pela elite e por essa estrutura racista que existe no Brasil, eles serão ouvidos pelos nossos irmãos pretos e pretas. Então sempre grite feito um demente que é para que todos possam te ouvir”.

O evento no Sindicato do Metalúrgicos de Sorocaba/SP, foi encerrado com uma roda de conversa, onde foram discutidos assuntos não somente sobre o livro, mas também sobre as mais diversas questões étnico-raciais (Foto: Rafael Filho)

Aos interessados em ter o exemplar, é possível adquirir pelo site: nocaminhodosol.com.br, que dará acesso e possibilidade de entrar em contato diretamente com o organizador da obra.

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