É uma vitória ter Africanidades no Enem?
Racionais MC’s novamente sendo assunto entre a galera nas últimas semanas. Desta vez no Enem. Em 2023 também tinham sido assunto. As capas dos cadernos de provas do Enem do ano passado vinham com frases de músicas do grupo de Rap. Mas, em 2018, eles também foram assunto de prova, né? O álbum Sobrevivendo no Inferno virou obra de estudo obrigatório para quem fosse fazer o vestibular da Unicamp.
Esse ano, a música Capítulo 4, versículo 3 foi assunto. Sim, no samba-enredo da Vai-Vai, intitulado: Capítulo 4, Versículo 3 – Da Rua e do Povo, o Hip-Hop: Um Manifesto Paulistano. Hum… então quer dizer que quase todo ano o tal grupo de Rap está envolvido em algum debate educacional? Entendi.
Será que é uma ação para enfiar esse estilo musical goela abaixo de nossos jovens? Não, meus caros, isso já faz parte do dia a dia, da realidade de muitos deles. Não foi nenhuma novidade. Muitos deles, inclusive os Racionais, podem não ter se espantado tanto e no máximo ter cantarolado o início do samba da Vai-Vai: “olha nós aí de novo”.
Ter os Racionais no Enem só é algo estrondoso para aqueles que, de maneira leiga, ainda não sabem a importância desse grupo (não só para o Brasil, mas para o mundo todo), ou aquele grupinho de intolerantes, racistas, preconceituosos, etc. que a gente já conhece. E não “vale a pena dar ideia nesse tipo aí”, só deixar os Racionais “abalar seu sistema nervoso e sanguíneo”.
“Renegados da moderna arte”, muitos jovens periféricos se sentiram acolhidos ao verem os Racionais na prova, pois muitas vezes é “cada um cada um, e você se sente só”. “Puxa, olha o som que eu ouço na quebrada aparecendo aqui”, alguns devem ter pensado. Ou dito ao chegar em casa: “pai, você não acredita, as músicas que você me ensinou a ouvir caíram na prova!”.
Vocês têm a noção da importância disso para um jovem, já que eles não fazem “parte da elite que insiste em boicotar?”. Eles puderam voltar para a casa batendo no peito e dizendo: “Acharam que eu estava derrotado. Quem achou estava errado. Meu corpo é fechado, eu sou cultura popular. Meu verso é a arma que dispara, e a palavra é a bala pra salvar”.
Durante o desenrolar do assunto, fiquei muito feliz com alguns relatos como, por exemplo, do ator André D’Lucca (@atorandredlucca) que estava pensando em parar as suas publicações de vídeos sobre a cultura africana devido às pancadas que sofre dos haters, todos os dias. “Decidi que não vou parar. Fiquei muito emocionado e feliz com as diversas mensagens de agradecimento, de alunos e pais dizendo que foram bem na prova por usarem meus conteúdos como material de estudo”, disse ele em uma publicação.
Ouvi também fortes ponderações dos meus Griôs (lideranças mais velhas do movimento negro), dizendo que o tema Desafios para a valorização da herança africana no Brasil e a presença dos Racionais no Enem, era algo a ser reconhecido, mas não comemorado como uma “vitória do povo preto”. Pois, na verdade, isso estava sendo uma “mínima reparação histórica, com séculos de atraso”.
Eu, enquanto um homem que se identifica como negro, sem “dinheiro, não tive pai, não sou herdeiro” e só pude concluir minha primeira graduação por meio de um programa do governo federal e que, atualmente, exige a participação no Enem para se inscrever (Fies), posso afirmar que se tivesse Racionais nos tempos em que fiz a prova, as coisas seriam bem diferentes.
O que não foi diferente dessa vez foram as críticas ao Ministério da Educação. Vimos, em algumas redes sociais, falas contra a presença dos Racionais na prova, afirmações de que a questão estava errada e pessoas cristãs afirmando que falar de Candomblé no Enem é uma alienação religiosa (mas forçar crianças a lerem a bíblia nas escolas, pode…) para levar os jovens a estudarem essa “religião do demônio”. Sendo que o diabo é uma crença cristã e não de religiões de matriz africana (sim, em pleno 2024 ainda temos que explicar isso). Para esse povo chato aí, o “preto aqui não tem dó, é 100% veneno”.