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‘Brincadeira’ que virou coisa séria: conheça a história do tradicional futebol varzeano de Sorocaba

Os campeonatos da várzea da cidade são movidos por torcidas fanáticas e apaixonadas pelo esporte. A revista Raízes acompanhou um dia de jogo do América, um dos principais times que disputa a primeira divisão, a Taça Cidade.

Torcedores do América acompanhando jogo do time na Taça Cidade, em Sorocaba (Foto: Bárbara Bruno)

Mais de cem anos se passaram e o que era considerado somente uma brincadeira entre ‘vizinhos’, virou coisa séria. Torcida em peso com música e bandeiras, muita rivalidade entre os bairros e um futebol que está longe de ter o glamour e a profissionalidade de grandes times brasileiros, mas é respeitado e dono de uma tradição gigante em Sorocaba.

O futebol varzeano começou a ser praticado na cidade em meados de 1920. Naquela época, não havia sequer um toque de profissionalismo, o que existia era uma disputa de futebol entre bairros com – bastante – rivalidade. Hoje em dia, o varzeano movimenta a cidade e leva inúmeros torcedores aos campos espalhados por toda Sorocaba.

Nerci Marcello, um jornalista sorocabano que já chegou a formar um time para disputar a várzea, é quem conta sobre a virada de chave para que o futebol varzeano se tornasse o que é hoje: uma disputa saudável com rivalidade dentro de campo e muita torcida nas arquibancadas.

Com ele, vai ser possível mergulhar no mundo deste esporte e entender tudo o que está por trás desta tradição entre os sorocabanos que chega a levar mais de 10 mil pessoas para acompanhar um jogo em um estádio.

“Antes de 1982, tinha os times que jogavam, da cidade mesmo, mas era tudo campo aberto, não igual agora. Naquele tempo, era bairro contra bairro, todos fortes, cerca de 36 times disputavam os jogos”, disse Nerci à revista Raízes.

Nerci Marcello, jornalista e assíduo no futebol de várzea sorocabano (Foto: Camila Alves

“Aí o Flávio Chaves foi eleito prefeito e trouxe com ele o  Benedito Cícero Tortelli, conhecido como Paulista. Depois de se aposentar no mundo do basquete, o Paulista retornou a Sorocaba e virou secretário de esportes na gestão do Flávio. Nisso, ele fez uma jogada de mestre. Ele criou um campeonato, porque tinha um monte de time, era impossível disputar, tinha muito jogo, uma bagunça, na hora de dividir sobrava time. E nisso ele pegou os 36 times e fez um torneio de início, fazendo com que, há mais de 40 anos atrás, o varzeano de Sorocaba evoluísse e se transformasse um pouco no que conhecemos hoje”, contou Nerci.

E foi assim que ‘nasceram’ as divisões do futebol de várzea de Sorocaba. Segundo dados da Secretaria de Esporte e Qualidade de Vida (Sequav), em 2024, a cidade conta com cinco torneios e suas divisões no varzeano.

São eles: a Taça Cidade de Sorocaba (1ª Divisão), a Taça Palácio dos Tropeiros (2ª Divisão), Taça Baltazar Fernandes (3ª Divisão), Taça Manchester Paulista (4ª Divisão) e o Supercampeonato de Veteranos (Taça Ouro, Taça Prata e Taça Bronze).

“Quando ele criou a Taça Baltazar Fernandes, que era a terceira divisão e depois viria a quarta que ainda não existia, começaram  a surgir times, times e mais times. Foi aí que eu montei o Paulista, que foi o time B do Paulistano, tradicional aqui. E todas essas disputas valem. Tem bandeira, árbitro, campo fechado. Trio de arbitragem sempre. Antes era no campo aberto, juiz apanhava, a torcida ficava em volta. Não dava para ter bandeirinha porque a torcida ficava muito próxima. Se o jogador errava, o torcedor dava um tapa. Agora não, tem até Guarda Civil Municipal (GCM) nos jogos para dar um apoio. Os saudosistas falam que naquela época era bom, porque não pagava. Mas eu gosto da segurança de hoje”.

Vale muito

O futebol varzeano sorocabano, assim como a maioria das coisas hoje em dia, é movido a dinheiro. Como contou Nerci, para um jogador ser inscrito, é pago por volta de mil a três mil reais, antes do início do campeonato. Porém, não são todos os times que têm essa condição e, por isso, se mantém entre os melhores que vão disputar o título, aqueles de financeiro mais elevado.

Inclusive, não é uma coincidência que times com mais caixa estão no melhor dos patamares do varzeano. Nos últimos tempos, estrelas recém-aposentadas do futebol brasileiro estão ganhando espaço nas equipes sorocabanas e muitas das vezes são o diferencial para que a equipe ganhe um título.

Goleiro Jailson, ex-Palmeiras e aposentado, jogando na várzea de Sorocaba (Foto: Divulgação/Instagram)

Como foi o caso do Jailson, ex-goleiro do Palmeiras, que foi contratado pelo Enquadros –  um dos mais tradicionais – e foi um dos maiores responsáveis pela conquista da Taça Ouro do Supercampeonato de Veteranos.

“O Enquadros trouxe o Jailson no gol, sabe se lá quanto ganhando por jogo, e ele fez a diferença e deu o título ao time no ano passado. O jogo estava 1 a 0 para o Enquadros e ele defendeu um pênalti do Paulistano. Rola comentários que esses jogadores ganham 1300 por jogo, então para eles é lucro, independente se o time vai perder ou ganhar, eles vão ganhar o dinheiro combinado antes. Ele pode morar onde quiser, vem para o jogo, disputa e ganha seu dinheiro”, explicou.

E não é só o ex-goleiro que chama a atenção nos gramados de Sorocaba. Outros grandes nomes como o zagueiro Maurício Ramos e o volante Corrêa, ambos ex-jogadores do Palmeiras, Viola, Capitão, Anderson Lima, Thiago Gentil, os também ex-goleiros Sérgio e Gléguer também já passaram pelos times varzeanos da cidade.

O ‘terceiro tempo’

E quando o time não tem condição de pagar salários aos jogadores ou, no máximo, pode pagar uma pequena quantia? É aqui que entra o terceiro tempo. Popular na várzea, a expressão carrega o real significado de ser a “parte três” de uma partida de futebol, que tem o primeiro e o segundo tempo.

Mas se engana quem pensa que o terceiro tempo é dentro dos gramados. Muito pelo contrário. Ele é muito usado como o “pós”, quando os times de menor poder financeiro reunem os jogadores e fazem, após o apito final dos duelos, uma reunião com bebida e comida – na maiora das vezes, churrasco -, à vontade para os jogadores e suas famílias. E então, isso vira uma espécie de “pagamento” pela partida disputada.

“E tem esses profissionais que recebem depois um pouco para jogar por partida e tem que ter o terceiro tempo. Acaba o jogo, é churrasco, é o jantar, é a cerveja. Terceiro tempo tem que ter. Se não tiver, acabou o jogo, vai todo mundo embora, e chamam de ‘time de esquina’, ninguém nem quer jogar nesse time. Os times com financeiro menor, é mais o terceiro tempo. Tem time que não paga jogador, mas dá o terceiro tempo. Porque eles levam família também. Ou leva a esposa com a criança e quando chega lá tem tudo”, explicou Nerci.

Jogadores do América entram em campo e se preparam para disputar a Taça Cidade (Foto: Bárbara Bruno

O jornalista contou, em meio aos risos, que já “sofreu” com o terceiro tempo enquanto ainda fazia parte do Paulistano. 

“Eu sofri com isso daí, porque quando acabava o jogo do meu time, todo mundo ia para um armazém, um negócio grande. Quando eu vi, estava tudo marcado lá, chocolate, latão, não sei mais o que. Eu falava que não era para dar, mas me diziam que eles pediam. Aí ficava a conta para nós pagarmos tudo. Se não pagasse, depois o cara não vinha jogar, tem que agradar. O dirigente varzeano merece uma medalha de honra ao mérito, porque é muito difícil”, comentou.

Hoje com 70 anos, Nerci vê o futebol varzeano como um hobbie e não mais como a obrigação de quando era um dos responsáveis pelo Paulistano.

“Eu cansei desse negócio de estar dentro de um time. É muito bom, mas dá trabalho. Hoje eu só sou torcedor do Paulista e assisto os jogos. Se precisar dar uma ajuda em alguma coisa, eu dou, mas é pouco. Eu tinha o estatuto, me procuraram e eu passei para frente. É bem complexo, mas organizado e profissionalizado. Os times tem que ter estatuto registrado no cartório. Eu vivi muito a várzea de perto, hoje acompanho e torço de longe, sem me envolver realmente”, concluiu.

A rotina de um dirigente varzeano

Como já explicado por Nerci, trabalhar na várzea tem diversos pontos positivos, mas nem por isso é fácil. A revista Raízes conversou com Paulão, diretor do América FC, o maior campeão da Taça Cidade, com 12 títulos.

O América foi fundado em 15 de fevereiro de 1948. Paulão faz parte do clube desde 98, “há um certo tempo”, como ele mesmo diz. O time foi inspirado no América do Rio de Janeiro, criado na rua Campos Salles, assim como o clube do interior paulista. Segundo o dirigente, um carioca veio, se juntou com alguns sorocabanos e assim nasceu o América.

Questionado sobre a missão de dirigir um time, Paulão não hesitou em resumir como um “lazer com responsabilidade”.

Ele ainda deixou claro que, apesar de não ser um time profissional no mundo do futebol, há muita gente envolvida para que o trabalho saia o mais impecável possível.

“Eu vejo como um lazer. É um lazer com responsabilidade. Hoje num clube desse tamanho, com essas glórias que tem, a gente não toca sozinho. Hoje tem 20 pessoas que fazem parte da diretoria, fora os agregados, os amigos que vêm, que ajudam. É o que eu falo, tem gente que no final de semana gosta de pescar, o outro gosta de andar de moto, o outro gosta de correr. Nós, que somos apaixonados pelo varzeano, gostamos de estar na beira de campo, fazendo toda a correria para o clube. Uma correria organizada, porque hoje, a várzea do jeito que ela é, se você não se organizar, você fica para trás. Então é investimento e organização. Essa é a várzea de hoje, mas tinha a várzea romântica de outras décadas, que não tinha esse negócio de pagar jogador, isso aí ficou para trás, na memória de quem participou. Mas agora é uma fase diferente, vai cada vez mais avançando”, explicou.

Paulão, dirigente do América, time tradicional de futebol varzeano em Sorocaba (Foto: Bárbara Bruno)

A prova absoluta de que o futebol varzeano não passa de um lazer é que Paulão se dedica ao América somente aos fins de semana. Durante a semana, é necessário se preocupar com as ocupações do dia a dia, como o trabalho e a família.

“Isso aqui é um lazer, meu trabalho mesmo é de motoboy num escritório de contabilidade. Já fazem 15 anos que eu trabalho aqui, isso aqui é um lazer mesmo. Temos a responsabilidade do dia-a-dia, da família, do sustento da família. É um lazer, mas um lazer muito sério, que nos cobramos muito. E a responsabilidade de um clube, o maior vitorioso, um time que nunca foi rebaixado. Mas é gostoso, sabe? O pessoal está bem contente”.

Torcedores do América reunidos para assistir jogo da Taça Cidade (Foto: Bárbara Bruno)

Um dia no varzeano

Sorocaba, 29 de setembro de 2024. Um domingo de jogo: a sétima rodada da primeira e classificatória fase da Taça Cidade entre Paulistano e América, líder e vice-líder do Grupo B do torneio.

Era um dia ensolarado, fazia 27ºC. Uma hora antes da partida – que estava marcada para iniciar às 10h30 – já era possível ver torcedores vestindo suas camisas vermelhas no Campo do Monte Negro, em Votorantim, para acompanhar o América.

Pouco tempo depois, a torcida do Paulistano com seu tradicional uniforme azul escuro começou a chegar. Mas, de fato, a predôminancia no campo Monte Negro, no Jardim São Carlos, era vermelha.

Campo onde jogou o América, em Sorocaba; torcida à espera do apito inicial (Foto: Bárbara Bruno)

Sem luxo, o local possui apenas uma arquibancada. O lugar que mais concentrou a torcida foi embaixo de árvores, para fugir do calor. Lá, as pessoas buscavam se sentar nas mesas, comprar algo para comer e beber e assistir ao duelo. Os mais assíduos e nervosos, assistiam em pé mesmo.

Júlio César, um dos torcedores do América há pelo menos 15 anos, comentou da sensação de poder acompanhar o time do coração.

“É um prazer estar junto com a rapaziada, com os torcedores novos que chegaram aí. É emocionante. Quando entramos nesse clube aqui, não tem como deixar de vir todo domingo pra assistir o jogo. É o que a gente faz, aqui é uma família, como se fosse parte da família da gente. Então, a gente vem todo domingo prestigiar o América a jogar”, disse.

Júlio César e seus amigos, todos torcedores do América (Foto: Bárbara Bruno)

O jogo, que estava previsto para às 10h30, teve cravado 17 minutos de atraso. O América entrou em campo, fez as últimas preparações e aguardou o momento que o Paulistano entrou em campo para, enfim, a bola rolar.

Se dentro dos gramados a ansiedade era para marcar o gol, fora deles, na torcida, os ânimos estavam exaltados. Mesmo não sendo futebol profissional, os torcedores levam o negócio a sério e nem a equipe de arbitragem é perdoada. O bandeirinha então, que ficava praticamente colado com a torcida, sofria com xingamentos a cada impedimento marcado.

Bandeirinha marca impedimento no jogo entre América e Paulistano (Foto: Bárbara Bruno)

O gol que demorava a aparecer, enfim, veio. O América abriu o placar com gol de pênalti de Marcelinho e a torcida veio a loucura em comemoração.

Porém, o resultado final não foi favorável para o time vermelho que viu o Paulistano empatar e virar o jogo com gols de Felipe Lima e Dieguinho.

Mas nem mesmo a derrota foi capaz de abalar o diretor Paulão, que está bem confiante com a fase que o time vive.

“No ano passado chegamos na decisão, fomos vice-campeões, perdemos a final para o Vila Helena. Mas esse ano o pessoal tá mais animado, a torcida comparecendo, está bacana. O América está voltando a ser protagonista de novo e está em ascensão. Com certeza, logo, logo vamos ser campeão de novo. Se não for esse ano, queremos que seja esse ano, mas se não for, no próximo ano vamos brigar sempre lá em cima”, concluiu.

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