Como a naturalização do sofrimento feminino pode levar ao adoecimento emocional?
Especial Série Setembro Amarelo – De acordo com Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, as mulheres são as maiores vítimas da violência em território nacional, representando 19,4% dos casos
Por Ana Torres (Agência Focas – Jornalismo Uniso)
De acordo com a pesquisa “Esgotadas” produzida pelo Instituto ThinkOlga, antes da pandemia, 7 a cada 10 mulheres tinham depressão. Somado a isso, atualmente, 6 a cada 10 tem o diagnóstico de ansiedade. Profissionais e pesquisadoras da saúde mental apontam que esse adoecimento não ocorre no vácuo seguindo por questões biológicas, mas por uma série de violências, privações e imposições que ocorre contra as mulheres.
Trabalho Invisibilizado
Em um relatório do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “em 2022, enquanto as mulheres dedicaram, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas, os homens gastaram 11,7 horas. As mulheres pretas ou pardas dedicaram 1,6 hora a mais por semana nessas tarefas do que as brancas.”
Para a psicóloga Amanda Rozas, de 30 anos, há uma naturalização desse lugar, levando as mulheres a se questionarem “o que há de errado” quando se deparam com quadro de depressão e não conseguem mais administrar as imposições sociais que é visto como uma obrigação natural.
No caso das mulheres negras essa situação tem um agravante, “historicamente, elas foram expostas a piores condições de trabalho, desde a exploração sexual na época da escravidão, até a questão do trabalho doméstico, de cuidado não remunerado” pontua a psicóloga e doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, Tamiris Cristina Gomes Mazetto, de 37 anos.
O Impacto das ViolênciAS
Outro fator do adoecimento é a naturalização da violência contra a mulher, que de acordo com a psicóloga Dara Suellen Pereira Lima, de 26 anos, a sensação de terror que essa insegurança causa, gerar em alguns casos, sintomas de estresse pós-traumático, “quando a gente assiste uma notícia de uma mulher que recebeu 61 socos do companheiro, ou uma mulher que foi espancada até a morte na Bahia, isso não gera o estresse, mas gera os sintomas”.
De acordo com o “Relatório Anual Socioeconômico da Mulher” de 2025, “em 2023, foram registradas 302.856 notificações de violência doméstica, sexual e outras formas de violência contra mulheres […]. A Região Sudeste, a mais populosa do Brasil, liderou em número de notificações, com 152.011 registros, seguida pelo Nordeste, com 56.829.”
Olhando pelos dados, quando se trata de uma mulher em situação de violência doméstica, seria fácil identificar a problemática, porém Amanda pontua que “fora desse cenário, algumas pessoas podem considerar que é muito tranquilo você ter uma ruptura, mas romper um relacionamento não é fácil para ninguém, quanto mais um relacionamento com uma pessoa que está trabalhando ativamente para minar as suas possibilidades de sair da situação”. A profissional acrescenta ainda que as estratégias para segurar a vítima neste lugar pode ser tanto uma ameaça financeira, física contra si ou outrem, ou, mais sutilmente, falar que ela não vai encontrar mais ninguém.
Dara acrescenta ainda que a validação da sociedade é outro peso para manter a mulher com seu agressor. “Vamos pensar estruturalmente, estar em um relacionamento para uma mulher nessa sociedade, significa que ela foi escolhida no mercado afetivo do amor, e para elas isso é muito importante, pois são mais validadas”, nesse problema estrutural, uma mulher ser escolhida significa que ela “presta”, então “às vezes é muito melhor estar em um relacionamento ruim, do que não estar sem”.
A profissional pontua a contradição, cobra-se que elas se afastem de seus agressores, mas ao mesmo tempo as fazem acreditar que precisam de um relacionamento para ser feliz.
Outra violência que assolam as mulheres, principalmente negras e periféricas, é a do Estado. Referenciando o livro “Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras em questão” da autora Rachel Gouveia Passos, a pesquisadora Tamiris Cristina expõe como a violência policial, que tira a vida de filhos ou companheiros das mulheres, gera mais um fator de adoecimento mental. “Então existe vários relatos de mães que dizem ‘o Estado matou meu filho e me deu em troca um Rivotril para que eu não sofresse’.”
Medicalização e Patologia
O acolhimento das mulheres na saúde também mostra sinais de defasagem, desde a produção dos fármacos. “Mesmo em termos de medicação, os testes em geral são feitos em homens, principalmente na dosagem […] Não tem muitos testes com antidepressivo, ansiolítico, medicamentos básicos com mulheres”, critica Amanda. A psicóloga ainda aponta que os impactos da falta de testes é uma prescrição errônea, que além de não levar em conta a dosagem correta, não pesa os ciclos biológicos femininos.
Dara defende que haja um conhecimento transversal no SUS, de forma que “todos os profissionais da rede, enfermeiros, médicos clínicos, da família, agentes de saúde, todos deveriam estar cientes de como fazer um primeiro acolhimento em saúde mental”, pois muitas vezes a situação é de uma tristeza ou frustração com o cotidiano que ainda não virou um transtorno. Essa ação seria um respiro para as filas de espera da saúde, pois a profissional acrescenta ainda que quando trabalhava no serviço público, eram duas psicólogas para seis postinhos de saúde, que tinham que lidar com uma fila de espera de mais 50 mil pessoas dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Com esta demanda gigante a saída mais utilizada, mais rápida e menos eficiente a longo prazo, é a prescrição de medicamentos. Dara pontua que os efeitos da falta de acolhimento e escassez de profissionais pode levar pessoas a desenvolverem o transtorno de forma patológica: “o que acontece na prática: a pessoa chega no enfermeiro e diz que está tendo problemas de ansiedade, e às vezes ela nem sabe o que é, pode ser outra coisa, então ocorre a receita do médico, e após seis meses esse paciente chega em mim, e ela já está cronificada, e então já não é mais demanda do postinho, é do CAPS [Centro de Atenção Psicossocial]”.
Esse movimento e chamado de iatrogenia que é “quando uma terapêutica tem uma finalidade, mas ela piora um quadro ao invés de melhorar” explica Tamiris. A professora aponta ainda que no “boom” da medicalização, as mulheres são as mais medicalizadas, “quase como se fosse medicar o ‘ser mulher’, com os vários estereótipos que são associados, fragilidade, maior propensão a ansiedade e depressão, a ‘loucura’ feminina, um processo e produto desse modelo de sociedade”.
Clinicas Racionalizadas
Outra violência que ocorre dentro dos espaços médicos é a falta de letramento racial dos profissionais.
De acordo com Suellen, não é viável que todas as pessoas negras sejam assistidas apenas por outros profissionais negros, pois o perfil majoritário da profissão são psicólogas mulheres e brancas, “elas precisam se conscientizar e ter letramento racial, porque eles vão atender pessoas negras, indígenas, amarelas, eles precisam estar cientes de como o racismo estrutural atinge cada uma dessas populações”.
A escassez de conhecimento pode levar aos estereótipos, que prejudicam o diagnóstico ou até a isenção dele “alguns diagnósticos não chegam para mulheres negras, como os de neurodivergências: o autismo, o TDAH, que são vistos para essas pessoas como birra, grosseria, frescura […] Porque quando falamos de dar um diagnóstico, estamos falando de dar acesso aos direitos”.
Sintoma social
Erradicar a naturalização do sofrimento feminino é defendido como uma política de saúde pública pelas profissionais, a professora Tamiris expõe como esse é um problema complexo: “quando a gente vai pensar nesses dados, seria muito simples falar ‘as mulheres tem uma tendência genética a ter mais depressão que os homens’ e não se trata disso, o tempo todo estamos falando de uma condição que pode ser orgânica, mas também estamos falando de uma condição social muito desfavorável para a proteção da saúde mental das mulheres”.
Dara complementa falando que isso é um sintoma de um problema social, em que os órgãos públicos deveriam focar na prevenção e propagação de saúde, antes de pensar no tratamento em si: “para muita gente [o tratamento] não era aquilo que ela queria, ela queria convivência, lazer, segurança no bairro dela, queria que os idosos tivessem acesso a alguma atividade, que as crianças tivessem uma atividade; é isso que está gerando o sofrimento, a pessoa só não vai conseguir verbalizar dessa forma, mas sim em forma de ansiedade, depressão e burnout”.




