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Sebos de portas abertas

Cláudia Ohana, Tiazinha, Luma de Oliveira… Percorro a sessão de ‘Playboys’, dispostas em uma prateleira na entrada, enquanto aguardo. São ensaios fotográficos antigos, mas, apesar das páginas amareladas, todas as retratadas mantêm soberba dignidade ali, em meio ao eminente pó e relíquias de outros tempos. Elvis Presley, em um vinil espetado acima na parede, me encara com olhar incriminador, de quem reprova minha indiscrição. Olho em volta antes de exibir a ele, provocador, a capa de um exemplar dessas revistas que já povoaram muito mais a imaginação de adolescentes (e adultos) em uma “era pré-internet” do que hoje. O rei do rock parece não se impressionar e seu topete irretocável me diz que as “coelhinhas” da América talvez fossem melhores que as nossas. Pus-me a pensar, imparcialmente e sem ufanismos, a respeito do assunto até que o bip do leitor de código de barras soou em minhas costas, me tirando do torpor, indicando o registro de uma nova venda. Pergunto a ele, então atrás do balcão, qual havia sido o negócio. “Um livro”, me responde, satisfeito e desconfiado, encarando-me por cima dos óculos de aros grossos enquanto me apresento.

O começo – Ele é Adevanir Élzio e tem 63 anos, dos quais 15 dedicados a atividade de livreiro. Seu sebo, localizado na Rua Padre Luiz, centro de Sorocaba, funciona desde 2005. Lá ele trabalha com a esposa Neide e mais três funcionários. “Comecei em Itu, em 97. Meu filho cursava Direito e eu não tinha dinheiro para comprar livros novos. Pensei em outras pessoas na mesma situação que a minha e resolvi abrir um sebo. Já tinha quatro mil livros que não cabiam mais na minha casa, comecei aí”, conta.

Hoje são mais de 48 mil títulos vergando as prateleiras do local, uma sede em São Paulo e outra em Presidente Prudente, vendas pela internet para o Canadá, Austrália, Portugal e Inglaterra, além do plano de em pouco tempo ampliar em 40% o acervo da matriz sorocabana. Mas se engana quem pensa que, apesar da prosperidade, tudo são flores para Adevanir, que se queixa da dificuldade em aumentar seu público: “Sorocabano é desinteressado por leitura se comparado a outras regiões, como no Sul do país, em que sempre se encontra pessoas lendo em bosques e parques. O exemplo é o “Vai-e-Vem” que é útil, mas a população não aproveita. A população usufrui pouco das bibliotecas da cidade”, reclama. “Vai-e-Vem” é o projeto municipal que disponibiliza em diversos pontos da cidade, inclusive presídios e hospitais, livros para locação gratuita e sem a necessidade de cadastro.

Abordado o assunto, pergunto a ele qual sua expectativa quanto à chamada nova classe C, se sua ascensão econômica e maior poder aquisitivo, tão aclamada pelos governantes e comentada pela mídia, pode esquentar também o comércio de livros no país, defasado se compararmos a outros itens de consumo. Mais uma vez Adevanir se mostra cético. “Há uma falta de interesse dessa nova classe. Aliás, ninguém hoje em dia abre uma enciclopédia, recorrem sempre ao ‘papai’ Google”, pigarreia e, antes que possa concluir seu raciocínio, um homem entra de súbito na loja.

É um homem descalço e bastante sujo, aparentando uns 50 anos, mas que bem pode ter uns 30, roupas em petição de miséria, como se diz, esmolando moedas para almoçar. Mais um indigente vagando entre tantos outros em uma nação que, historicamente, parece prezar por sua desigualdade social. “Entrevista ele, entrevista ele!“, Adevanir agita-se indignado diante da proposta milenar do desconhecido e se dirige a mim agora, “pergunta a ele se ele lê, quantos livros já leu?”. A única pergunta que faço é a mim mesmo, e ela é se o livreiro era mesmo corajoso para tanto, mas, já à vontade e me sentindo meio influente, categoricamente faço a inoportuna pergunta ao homem confuso: afinal, ele se interessa por literatura? Mais categoricamente ainda o sujeito me responde, deixando claro em poucas palavras, que seu único interesse é comida e sai: sem suas moedas e sem entender lá muita coisa.

Retorno à infância – Passado o episódio, Adevanir parece mergulhar em reminiscências. Eufórico, mostra a cartilha “Caminho Suave” e ‘a meninice voltou a brincar em seus olhos’, diria Manuel Bandeira. “Foi com esta cartilha que aprendi a ler e escrever, lá no Paraná. Voltava da escola, atirava o guarda-pó ao canto e ia ajudar meu pai na lavoura de café. Com 7 anos, eu já limpava tronco de café!”, orgulha-se, ainda se referindo indiretamente ao homem que há pouco havia partido.

Correndo as vogais e consoantes das nostálgicas páginas, a impressão que se têm é que Adevanir vê pela primeira vez a cartilha, ainda na infância. “Os pais são importantes para que a criança se interesse pela leitura. Muitos deles vêm aqui com os filhos para que eles mesmos escolham livros, vejo isso muito aqui”, e complementa, “Criança que lê se destaca das demais. Penso que a função de um livreiro é ser útil à comunidade, dar a oportunidade a ela de ter acesso a livros. Aqui, todos os livros técnicos, didáticos e acadêmicos saem até 70 por cento mais barato que um novo”, garante, antes de me mostrar algumas caixas de papelão abarrotadas de livros, prontos para as doações periódicas que o livreiro faz a asilos, escolas e APAE’s de Sorocaba e de outras cidades da região.

Tecnologia versus livros – Quanto aos Ipads, tablets e outros suportes eletrônicos de leitura, Adevanir não os vê como ameaças ao livro impresso. “Quem gosta do livro não vai ficar impressionado com novas tecnologias. O manuseio, o cheiro, o tato… É diferente.” Boa parte de seus clientes são estudantes e os livros que precisam ser constantemente repostos nas prateleiras são os de literatura estrangeira, infanto-juvenil e técnicos.

Das chamadas raridades, artigos difíceis de serem encontrados em lojas convencionais, mais comuns em sebos. O homem sai apressado de meu campo de visão e retorna exultante com um vinil de Raul Seixas da época em que o cantor ainda atendia apenas por “Raulzito” e tocava com “Os Panteras”. “Esse é coisa fina”, exibe com vaidade, e relata. “Houve uma vez em que um cliente encontrou um vinil que procurava há tanto tempo e ficou tão feliz de encontrar que saiu da loja beijando o disco. Recebo muitos colecionadores aqui.” Um dicionário morfológico de tupi-guarani, histórias em quadrinhos lançadas originalmente na década de 50 e 60, além de uma série de fotonovelas que datam de 1953 são, também, os coqueluches de Adevanir que, antes de minha partida, me chama em um canto e faz questão de me mostrar um vinil do Roberto Carlos, um entre tantos da coleção do rei da MPB expostos na loja. “Esse é especial porque é todo de canções em italiano, gravadas após o cantor vencer um concurso na Itália em que o segundo colocado, um italiano legítimo, frustrado com a derrota, se enforcou…”, me sussurra o livreiro, em tom confidencial.

Agradeço, despeço-me de dona Neide e vou embora, pensando no caminho se o tal italiano talvez não tenha exagerado, passando com desinteresse pelo faminto sem moedas em sua jornada.

DIVULGADOR CULTURAL
“A pessoa que não lê não sabe escrever, não compreende o mundo. O livro amplia o horizonte de uma pessoa. Os livros tiram a neblina de seus olhos e mostram o mundo a ela. Quem não lê não fala e não se expressa bem”. Essa sentença, que todo mundo já deve ter ouvido ao menos uma vez na vida de um professor no ensino médio, é reproduzida por Glauco de Castro, 32 anos, há 8 comandando um sebo que tem a cara de um receptivo porão de relíquias.“Começou como um brechó, mas tínhamos livros também. A parte de livros se desenvolveu mais, transformamos a loja em um sebo e trazemos mais coisas pra cá”, conta Glauco.

O sebo, localizado na Rua Nogueira Martins, Centro, é pequeno. Ali dividem espaço inúmeros gêneros de música, literatura e outros artigos culturais, em um ecletismo que lembra uma pequena feira de exposição incoerente e ambiciosa, tentando comportar todas as décadas, todos os estilos, todas as vertentes de produção artística em um espaço reduzido. A sessão de música clássica alemã, por exemplo, fica ao lado da sessão de rock; a de jazz comprime-se junto à denominada simplesmente como “Tropicália”, movimento que abrange o período de um Caetano Veloso ainda moço, Gilberto Gil tentando firmar-se no cenário musical, os Novos Baianos e toda a turma que deu um nó na cabeça de críticos da época. “É uma atividade sustentável, tem que trabalhar bastante, é preciso organização, atendimento ao público. Quanto mais você trabalha nele, mais você gosta. Pela diversidade, pela possibilidade de entrar em contato com várias culturas. É apaixonante estar nesse ramo.”

Atemporais – Contam hoje no acervo em torno de 4 mil livros de diversos temas, distribuídos em prateleiras que formam pequenos corredores no fundo da loja.“Os clássicos, como Balzac e Dostoiévski, ainda vendem muito bem. Gosto muito de Jorge Amado, Arnaldo Jabor, Nelson Rodrigues, Machado de Assis…”, conta o livreiro, listando alguns de seus autores preferidos que, por princípio ou não, são todos nacionais. Pergunto a ele se é uma preferência deliberada essa, por autores brasileiros, e ele nega, diz gostar de autores estrangeiros também e diz não ter preconceitos quanto ao assunto. “Por exemplo, essas novas sagas que se tornaram famosas, como Crepúsculo e Harry Potter, há um preconceito quanto a elas, mas é uma porta aberta para novas leituras. Ainda que sejam livros tidos como comerciais, isso pode instigar o adolescente a ler mais e mais e coisas diferentes também.”

Assim como Adevanir, Glauco não crê em um sobrepujamento da tecnologia aos livros palpáveis. “A tecnologia é restrita, não é pra todos. O livro físico ainda é mais viável. Livros de cem, oitenta anos… não vai ser a tecnologia que vai acabar com isso. O tato, o olfato… o papel ainda é importante”, diz, acrescentando que a função fundamental de um livreiro, em sua opinião, é o de ser um divulgador cultural, fazendo a mediação entre as pessoas e os livros, tornando-os mais acessíveis, em uma labuta diária para “aproximá-las da cultura universal.”

Glauco se mostra também otimista com o futuro do país no campo da leitura e criação literária, tanto importando quanto exportando conteúdo e diz confiar que não tarde os brasileiros abrirão os olhos para a importância do conhecimento. “Sou entusiasta quanto a isto. O carro vai sempre estar lá. Bens materiais apenas não adiantam. Essa nova classe C, por exemplo, será uma classe social estagnada. Ela correrá atrás de conhecimento até mesmo para manter o seu status. Acredito sim que haverá, em breve, uma ascensão também cultural no Brasil.”

Colecionadores e raridades – Glauco conta já ter passado por situações curiosas em seu trabalho, como quando precisou se comunicar com um comprador através de mímica. “Um sujeito da Suíça vinha passando e entrou na loja. Ele não falava português nem inglês e nós começamos a conversar só por gestos. O cara era fã de Elvis e colecionador de sua obra, levou tudo do Elvis que eu tinha na loja”, relembra aos risos, antes de emendar a história a uma insólita venda que fez a um americano que morava em Portugal e encomendou, via correio, um vinil da banda de rock Rush. “Vendo aqui compactos de celebridades instantâneas que gravaram apenas um disco e caíram no esquecimento. Vendo vinis a partir de um real até alguns mais raros que são, por isso, mais caros. Recebo aqui muita gente que sempre quis ter o disco de seu ídolo, mas não tinham dinheiro para comprar na época em que foram lançados. Hoje, mais baratos, elas fazem a festa.”

Inezita Barroso, coquete e jovem na capa preta e branca de um de seus primeiros vinis, acena para mim na saída.


Lucas Montenegro (AgênciaJor/Uniso)

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