Projeto de extensão ajuda adolescentes em situação vulnerável
Por Rafael Filho (Agência Focs – Jornalismo Uniso)
Buscando a reinserção social de adolescentes que estiveram envolvidos em alguma situação de violência, os cursos de Psicologia e Pedagogia da Uniso, em conjunto com o Poder Judiciário e por meio do programa Justiça Restaurativa com o projeto Educação e Cidadania, realizam atividades de extensão universitária no câmpus Trujillo da Universidade. “A Sueli, que trabalha com a Justiça Restaurativa, demonstrou o desejo da parceria e fez o convite. E assim como outras universidades de todo o Brasil, aceitamos, e a Uniso abraçou a ideia”, conta Albertina Paes Sarmento, professora do curso de Pedagogia, que está no projeto desde o começo, em 2021.
Segundo a professora do curso de Psicologia Cristina Maria D’Antona Bachert, que participa do projeto, a ideia original era trabalhar com crianças abrigadas em casas-lares, por motivos de violência familiar, ficando a Pedagogia responsável por acompanhar essas crianças no aspecto de aprendizagem (alfabetização, matemática, conceitos básicos), e a Psicologia responsável por acompanhar a socialização dessas crianças na escola. “No início de 2022, a Sueli trouxe uma demanda muito importante com adolescentes em medida socioeducativa. Topamos a ideia e nos preparamos para atendê-la”, conta Cristina.
Segundo Sueli Aparecida Corrêa, articuladora de ações de Justiça Restaurativa na Comarca de Sorocaba/TJSP, o Projeto Educação e Cidadania é uma parceria da Uniso (cursos de Pedagogia e Psicologia) e da Vara da Infância e Juventude, com o fornecimento do vale-transporte aos participantes feito pela Prefeitura.
Ela conta que esse projeto nasceu de uma necessidade percebida nas práticas restaurativas, referentes ao engajamento e motivação para escolaridade. “Ele foi construído pelas professoras da Uniso, Cristina e Albertina, para propor formas concretas de lidar e transformar essa realidade aos que foram convidados” detalha Sueli.
Para Albertina, o projeto tem uma importância muito grande no desenvolvimento da autoestima dos assistidos e também os ajuda a perceberem que existem outras possibilidades e perspectivas de futuro. “Buscamos mostrar para eles que é possível se escrever uma nova história de vida. Que não existem só aquelas que eles conhecem e estão vivenciando. A ideia é abrir esses novos horizontes para eles”, relata a professora.
Sobre as principais atividades que as crianças desenvolvem no projeto, no âmbito pedagógico, Albertina explica que são trabalhados principalmente o letramento e o entendimento de mundo. “Nós trabalhamos com poesias, letras de música e incentivamos a pesquisa. São várias atividades voltadas sempre ao letramento, alfabetização e matemática”, detalha.
Já no âmbito psicológico, Cristina conta que são desenvolvidas atividades que buscam a evolução pessoal de cada adolescente, no intuito de que ele possa responder a três perguntas básicas da Psicologia: Quem eu sou? (Autoconhecimento), O que eu fiz? (Autorregulação – como posso mudar o meu modo de agir/reagir) e quem eu quero ser? (Olhar para o futuro em uma perspectiva ampliada. Como posso trazer melhoras tanto para mim quanto para a comunidade).
Cristina explica que a Psicologia tem a função de ajudar esses adolescentes a entender que são encaminhados para o projeto educativo não como forma de punição, mas para repensarem e se reposicionarem sobre aquilo que aconteceu. “Infelizmente, a maioria está afastada da escola e com dificuldades de alfabetização. A união da Psicologia com a Pedagogia serve para desenvolver os jovens, desde a escrita e a leitura até a habilidade de comunicação”, detalha a psicóloga.
O que é Justiça Restaurativa
Segundo Sueli — que trabalha com Justiça Restaurativa desde 2017, quando iniciou o projeto de implantação —, essa abordagem nasceu através do descontentamento com a Justiça Tradicional de profissionais da área do Direito na década de 70. Sueli conta que eles realizaram estudos em maneiras de viver em comunidade que considerassem a cooperação, a colaboração e o diálogo respeitoso. “Assim, a definição de Justiça Restaurativa apresenta na sua constituição um olhar ampliado da sociedade e sua organização, preconizando essas formas de convivência”, sintetiza Sueli.
Utilizando uma fala de Susan Sharp (2018), que tem como uma de suas pesquisas as políticas penitenciárias nas famílias dos infratores, Sueli explica que, na Justiça Restaurativa, “o envolvimento do ‘infrator’ se torna significativo, não apenas para que ele se sinta mal pelo ato cometido, mas para que tome consciência da responsabilidade pelo dano que cometeu e, então, possa encontrar maneiras de fazer as coisas certas”. De acordo com Sueli, nessa abordagem a vítima tem um papel central e não apenas passivo no que se refere a ter voz e vez como o autor da transgressão, para falar dos seus sentimentos e necessidades, bem como os impactos em sua vida após esse ato ou fato que gerou uma ofensa ou violência.
“Isso é feito por meio de um diálogo respeitoso e sistematizado com profissionais preparados para esse encontro em local seguro”, ela pondera.
Conforme Sueli, na Justiça Restaurativa, ao estar de frente com a violência, o foco não é apenas a pessoa e sua família, mas sua comunidade e a estrutura social do seu tempo. Segundo ela, em Sorocaba/SP, a Justiça Restaurativa foi implantada em agosto de 2017, na área da Justiça Juvenil, para adolescentes em conflito com a lei. Porém, foram realizados acordos e articulações entre diversos setores do município para início efetivo dos atendimentos em agosto de 2018.
Explicando o fluxo do processo, Sueli conta que quando ocorre um boletim de ocorrência em que o suposto ofensor é um adolescente, são enviadas cópias para três órgãos distintos: o cartório da Vara da Infância e Juventude, Ministério Público e uma instituição que atenda medidas socioeducativas por meio de convênio com a Prefeitura. “Quando o boletim de ocorrência chega na organização da sociedade civil, o adolescente e seus responsáveis são convidados a participar das práticas da Justiça Restaurativa e de suas atividades complementares”, relata Sueli.
Sobre como as pessoas e instituições podem ajudar a Justiça Restaurativa, Sueli explica que a principal forma de apoiar em qualquer município “é a abertura para conhecer e entender que trabalhamos com o diálogo respeitoso inclusive nos conflitos mais complexos que envolvem violências diretas ou indiretas, através de práticas que promovam a reflexão e a responsabilização dos envolvidos e o protagonismo da vítima em seus sentimentos e necessidades, assim como do autor do ato que causou o dano”. Ela salienta também que a divulgação e o financiamento dos projetos são outras formas de apoio que podem ajudar na ampliação das áreas de atuação.
“Praticamos a comunicação não-violenta além de todas as práticas dialógicas que envolvem cooperação, colaboração e formas concretas de responsabilização”, relembra Sueli. Para quem tiver interesse nas ações da Justiça Restaurativa, ela reforça que em Sorocaba existe o Grupo Gestor de Justiça Restaurativa, que, além de avaliar os projetos da ação, promove cursos de introdução ao tema. Quem quiser saber mais é só entrar em contato pelo e-mail: cursointroducaojrsorocaba@gmail.com.
A importância para os cursos e o retorno de quem leciona
Sobre a importância do projeto para o curso de Pedagogia, a professora Albertina cita que já teve mais de 18 alunos envolvidos, e que a cada semestre são formados grupos diferentes, para que todos os interessados possam participar. “Eu percebo o quanto meus alunos evoluem trabalhando com esses adolescentes. O objetivo maior é que eles entendam essa diversidade e as dificuldades que às vezes muitos adolescentes encontram dentro do ambiente escolar”, relata.
Ela reforça que muitos destes futuros profissionais da Educação irão se deparar com crianças, principalmente nas séries iniciais do ensino fundamental, que apresentarão grandes dificuldades com letramento, alfabetização e matemática. “Eles serão professores, diretores de escola etc., então é importante que conheçam essas dificuldades. O projeto contribui para que eles avancem nesses conhecimentos tão importantes”, conclui Albertina.
Para a professora Cristina, o projeto Educação e Cidadania é muito importante para o curso de Psicologia. Ela afirma que, por meio dele, é possível demonstrar para seus alunos o tamanho do privilégio que é poder trabalhar em ações como esta. “Eu consigo mostrar para meus alunos que essa situação fragilizada, em conflito com a lei, pode mudar; não é uma posição definitiva. Houve um erro, mas um processo de mudança é possível”, confidencia Cristina.
“A educação é a nossa única garantia de tentar construir um mundo melhor. E se a gente cuida dessa geração que hoje são crianças e adolescentes, a gente está cuidando do nosso futuro”, enfatiza Cristina. Ela complementa dizendo que se as crianças e adolescentes tiverem uma qualidade de educação melhor, podem ir muito mais longe e fazer coisas muito mais significativas tanto para eles quanto para a sociedade, melhorando a qualidade de vida de todo mundo. “O trabalho não se resume às horas do projeto e ao momento da supervisão que ocorre no fim do dia. Durante a semana ocorrem muitas discussões sobre os temas. Às vezes são onze horas da noite e eu estou respondendo mensagens”, comenta Cristina.
O que os alunos universitários sentem?
“Eu acho que, diferentemente de todo o conteúdo teórico que a gente administra dentro da Universidade, esse momento de projeto de extensão, esse trabalho junto aos adolescentes traz realmente o motivo de nós termos escolhido a Psicologia como futura profissão”, confidencia o estudante Murilo Cachale, do sétimo semestre do Curso. Ele comenta que a experiência do projeto é uma via de mão dupla, em que os adolescentes assistidos aprendem com os alunos universitários e vice-versa. “Eles desmistificaram muitas questões para nós, e nós desmistificamos muitas questões para eles também”, explica.
Demonstrando que o projeto pode trazer uma evolução não somente profissional, mas também enquanto cidadão, Cachale comenta que participar de atividades como esta pode ajudar as pessoas a quebrarem paradigmas e possíveis preconceitos existentes em relação ao trabalho com jovens infratores, entendendo a perspectiva de que existe solução, mudança de vida para todo mundo. “Não é porque uma pessoa cometeu um erro, vive numa situação precária ou com dificuldades, que ela não tem oportunidade de traçar novos rumos e a vida mudar de perspectiva no futuro”, enfatiza Cachale.
Para a aluna Luisa Campioni Montes Garcia, de Pedagogia, sua participação no projeto a ajudou a lidar com as situações de uma sala de aula, na vivência com os alunos e principalmente a ter mais empatia e compreender mais cada aluno.
Segundo ela, os profissionais de Educação precisam estar preparados para enxergar os potenciais dos alunos, e não ficar evidenciando somente as dificuldades existentes. “Tive a oportunidade também de ter um pouquinho de noção do que vou encarar no mercado, na hora que eu for para as escolas. Posso dizer que saio transformada deste projeto”, explica.
De acordo com Luisa, o educador precisa estar atento para entender o contexto da pessoa, as suas dificuldades e as problemáticas da realidade em que ela se encontra, tendo um olhar sempre além do que está sendo visto. “É preciso olhar além do aluno. Muitas vezes ele é visto nas escolas como apenas uma nota. Nosso maior desafio é ensinar, mas também ensiná-los a gostarem de aprender”, detalha Luisa.
Mesmo estando ainda no começo do Curso, a aluna Thais Albuquerque, do terceiro período de Psicologia, já está envolvida em um projeto de extensão universitária, e classifica a experiência como única e enriquecedora, já que é possível se entender a teoria da sala de aula na prática, em campo. Segundo Thais, o projeto fez com que ela tivesse ainda mais certeza sobre a sua escolha. “Procure os professores, o coordenador de seu curso. Sempre tem algo que a Universidade está fazendo com a comunidade ou uma iniciação científica disponível. Sempre tem projetos a serem feitos, e os professores precisam de nós, alunos, para o desenvolvimento”, aponta.
Sobre a importância de projetos como este para o aspecto psicológico dos adolescentes assistidos, Thais comenta que é uma experiência única na vida deles, e que se todos pudessem ter essa oportunidade seria de grande valia, já que nos encontros eles podem compartilhar seus sentimentos e ter uma perspectiva de futuro. “Isso vai fazer uma diferença muito grande na vida deles, uma vez que estão tendo contato com outras pessoas na mesma situação. E só deles aceitarem estar aqui já é válido”, afirma.
Evolução dos jovens e resultados obtidos
Cristina comenta que a maioria dos assistidos pelo projeto está na faixa entre 14 e 17 anos, momento para se começar a olhar as habilidade e interesses que possuem, para que já possam ser direcionados. Sobre um dos participantes, ela comenta que tanto ele quanto outros adolescentes podem ser superdotados, e os pais e professores muitas vezes não conseguem identificar isso. “Estando perto de profissionais da Psicologia, ele pode ser orientado para unir a curiosidade que ele tem com os interesses e definir uma carreira profissional”, explica Cristina.
Segundo ela, o projeto tem sido também uma ponte para os assistidos conhecerem alunos de outros cursos. “Isso é fundamental na orientação profissional, para ajudar eles a entenderem se a realidade está de acordo com a expectativa. Já tivemos alunos de Estética, Moda e outros”, relata.
Para Albertina, os resultados do projeto têm sidos satisfatórios. Ela conta que um adolescente que foi assistido confidenciou durante as atividades que tinha um gosto muito grande pela área de mecânica, e que, depois de muitos esforços, hoje ele está trabalhando como jovem aprendiz em uma grande multinacional de Sorocaba/SP. “Fomos atrás e conseguimos. O diretor da empresa disse que ele precisaria fazer uma prova. Chamei professores de Português e Matemática, fizemos um intenso reforço escolar e ele conseguiu. Ficamos muito felizes”, enfatiza.
A professora conta o exemplo de outro assistido, que na época estava envolvido com tráfico de drogas; ele sinalizou que gostaria de mudar sua condição e recebeu apoio. “Ele mudou totalmente. Conseguiu um emprego e conheceu uma pessoa. Hoje eles vivem em Santos/SP, estão trabalhando e construindo uma família”, declara Albertina. A professora confidenciou também uma situação que a emociona muito, e que ela chama carinhosamente de “a queda dos bonés”.
“Eles chegam muitas vezes tímidos, calados e, às vezes, com o boné tampando todo o rosto. Logo vão se abrindo, os olhos começam a aparecer abaixo do boné. Até que chega o momento que eles tiram o boné e podemos ver seus rostos felizes por completo”, afirma Albertina, que complementa dizendo que os assistidos recebem também orientações sobre programas educacionais como Prouni e Fies.
Após verem uma feira de ciências realizada pelos alunos do Colégio Dom, os assistidos pelo projeto gostaram muito da ideia, tiveram vontade de fazer uma também e sinalizaram isso para suas orientadoras. A estudante de Matemática e estagiária de reforço escolar no Colégio, Nathalia Pastorello, recebeu o convite para auxiliar os assistidos na parte da Química, já que faz parte de sua formação. Nathalia explicou que a organização da feira foi toda dos alunos de Pedagogia, e que seu auxílio foi mais na finalização dos experimentos.
A favor da inclusão e defensora de ideias como a de mais meninas na ciência, Nathalia ficou feliz com o resultado da feira e pelo fato de a pesquisa científica ter despertado a atenção dos adolescentes. “Fizemos um ensaio/teste uma semana antes, e deu tudo certo. Eles ficaram bem contentes”, declara Nathalia. Uma das adolescentes irá escrever um jornalzinho contando como foi a experiência.
Cristina conta que, a cada semestre, os participantes estão muito mais envolvidos, mesmo os encontros sendo aos finais de semana, quando para muitos seria um dia de descanso. “Mesmo existindo uma ordem judicial para o comparecimento, eles fazem questão de estar aqui. É uma sensação de pertencimento, engajamento, de se sentirem vistos e respeitados”, relata Cristina. Em relação aos alunos de Psicologia, ela comenta que eles estão comprometidos há um ano e meio com o projeto, e que eles têm se especializados em formas de acolhimento e apoio aos participantes.
“Eles têm alcançado um grande desenvolvimento e evoluído muito na formação a cada dia. Alguns já se formaram, mas querem voltar ao projeto”, enfatiza Cristina.
Segundo Sueli, de 2018 a 2019, o índice de reincidência dos adolescentes que aceitaram essa abordagem foi de 12,7%, e entre 2020 e 2021, de 19%. Para ela, esses índices considerados positivos e semelhantes a cidades que começaram há mais de 10 anos. “Porém, não é só a estatística o nosso foco, e sim a transformação da vida pessoal e social que vai além do assistencialismo e foca no protagonismo da pessoa que constrói novas formas de viver e conviver. ”
De acordo com a articuladora de ações da Justiça Restaurativa, em dois anos, mais de 32 crianças retornaram à sua família de origem, e que elas transformaram sua forma de conviver e cuidar dos filhos, com dignidade e protagonismo. Sueli finaliza reforçando a necessidade de apoio e financiamentos para projetos como este, já que, segundo ela, quem perde são as famílias em altíssima vulnerabilidade. “Elas recebem, caso aceitem, uma atenção personalizada, com recursos para lidar com a situação que deu origem ao acolhimento, além da garantia de direitos que o município proporciona, como um apoio a mais dentro das múltiplas necessidades que vivenciam” pondera Sueli.