jornalismo onlineSorocabaUniso

As faces da violência nos jogos digitais

Até que ponto a violência é saudável enquanto mecânica de jogo

Por Luís Felipe Pio (Agência Focs – Jornalismo Uniso)

Os jogos digitais tornaram-se uma mídia atuante e tão importante quanto Cinema, Rádio, Televisão e Internet. Esse meio não para de conquistar o interesse da indústria e do público jovem. Um levantamento da Abragames (Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos) mostrou que a indústria brasileira de desenvolvimento de games cresceu mais de 600% em oito anos, passando de 133 empresas, em 2014, para 1.009 no País, em 2023.

A indústria de videogames conquista cada vez mais público e utiliza-se de fatores de atratividade cada vez mais variados para produzir e vender seus jogos. Um desses fatores, muito frequente inclusive, é a representação da violência. Com o avanço da tecnologia e dos recursos gráficos, os jogos estão mais sofisticados e estão muito próximos de desenvolverem produções que representam atos de violência de maneira bastante verdadeira. Jogos como GTA ou Mortal Kombat, por exemplo, são muito populares e aceitos entre os jogadores.

Porém, existem jogos de semelhante dinâmica, lançados no século passado, que não ganharam a permissividade do público em relação à prática de violência. A discussão que se levanta é: até que ponto os jogadores acham aceitável as representações de violência? Existem certos tipos de violência mais aceitáveis – e até desejáveis – entre os jogadores? Existe um limite?

A tese “Violência nos games: os efeitos de sentido nos discursos dos jogadores“, defendida por Angélica Caniello, no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), apresenta exemplos de jogos violentos rejeitados pelos jogadores, bem como os que foram amplamente aceitos.

Rape Day

Integrando o grupo de jogos sangrentos e com classificação indicativa para maiores de 18 anos, Rape Day foi lançado em 2019, nos EUA. Porém, foi rejeitado por ter, segundo uma grande parcela dos próprios jogadores, um conteúdo inescrupuloso com violência explícita demais. Esse jogo em questão é ambientado em um apocalipse zumbi e o personagem principal é livre para assediar e simplesmente estuprar não só mulheres, mas qualquer sujeito que encontrar pela frente – além de poder praticar também a necrofilia, inclusive em bebês. O jogo obviamente causou muita polêmica. Os jogadores não só consideraram o jogo imoral, como o acharam revoltante e pediram que não fosse disponibilizado pela plataforma Steam, distribuidora de jogos digitais. E assim foi feito.

GTA

Grand Theft Auto ou GTA é uma franquia de jogos com muito sucesso comercial e que, desde seu primeiro lançamento, em 1997, tem classificação indicativa para maiores de 18 anos. No jogo, o protagonista é um anti-herói que pode roubar carros, matar pessoas e usar drogas.

A criadora do jogo, Rockstar, na produção do game até contratou membros de gangues reais e criminosos para fazer a dublagem dos personagens e, dessa forma, ser mais fiel à realidade. A Rockstar tem um longo caminho de ataques e controvérsias que a tornam alvo de censura, contudo nada impediu que a empresa estivesse ativa há mais de 20 anos.

Entretanto, diferentemente de Rape Day, em GTA há uma narrativa muito presente que permite, inclusive, ao gamer decidir qual melhor estratégia ele usará para executar as missões para as quais é designado. O jogador pode escolher qual nível de violência desempenhar durante as missões do jogo, como também pode optar por não realizar missão nenhuma e vagar pelos cenários cometendo crimes, atacando pessoas, dando chutes e socos, aleatoriamente. Tão aleatório quanto o Rape Day.

GTA V – Foto: Game243

Fatalities do Mortal Kombat

Um quadro que gerou controvérsias na época de lançamento, em 1992, foi o do Mortal Kombat por conta do golpe de finalização das lutas. No jogo, quando seu adversário é derrotado, você tem a opção de matá-lo com um golpe terrivelmente brutal – são os famosos fatalities. Com o passar dos anos e com a evolução gráfica do game, esses fatalities ficaram cada vez mais chocantes e espetaculares. Tão espetaculares que alguns autores afirmam que essa forma bizarra de violência tem por objetivo tornar o jogo mais ‘engraçado’. Assim, o jogo ganha contornos de uma comédia ‘pastelão’.

Mortal Kombat X – Foto: Fatos Desconhecidos

Outro game polêmico relevante é o Wolfenstein 3D, também de 1992. O game inaugurou o estilo de jogo de tiro em primeira pessoa, porém, na época, não sofreu muita censura porque o alvo de ataques a essa altura era o Mortal Kombat – dado como ‘realista demais’– e também porque os inimigos no Wolfenstein eram os nazistas. No entanto, para evitar controvérsias futuras, quando foi lançado para versão em console, o jogo retirou as suásticas, o vilão (Hitler) foi substituído e os cachorros tornaram-se espécies mutantes. Era moralmente mais aceitável atirar em pessoas do que em cachorros.

O que os diferencia?

A professora dos cursos de Comunicação da Uniso, Angélica Caniello e autora da tese sobre os efeitos de sentido nos discursos dos jogadores, explica possíveis critérios usados pelos próprios gamers para determinar se um jogo é muito violento ou não. 

Professora Angélica Caniello – Foto: Arquivo pessoal

Ela faz um panorama com um jogo popular, mas que promove um outro tipo de abordagem, o Undertale. “Nesse jogo, os inimigos, que são monstrinhos, são apresentados de forma a entender que eles têm alma. Você tem a possibilidade de dialogar com esses inimigos e entender o lado deles. Isso é diferente dos outros games que o adversário é como se fosse um robozinho, simplesmente um obstáculo a ser superado”, pontuou. “O jogo possibilita não eliminar os monstrinhos e a maioria das pessoas prefere mesmo não eliminar”.

A professora explica que é criada empatia nos jogadores por mostrar que do outro lado – o lado do inimigo — existem indivíduos que interagem com eles. Isso leva-os a buscar alternativas à violência para alcançar seus objetivos. Por exemplo, no Wolfenstein, o jogador mata seus combatentes no campo de batalha, mas é porque existe um objetivo a ser alcançado. E, nele, a violência é mais aceitável pois os inimigos não passam de “robozinhos”.

“Esse inimigo a ser combatido (em jogos cuja violência é regra) não tem importância nenhuma e isso acaba normalizando a questão da violência, tornando-a aceitável, não só por parte dos jogadores, mas também por parte das mídias. Se houvesse essa empatia, que é muito trabalhada no Undertale, as pessoas talvez buscassem outra forma de atingir uma meta”, afirma Caniello.

Já, games como RapeDay – o jogo do estuprador, imediatamente rejeitado — buscam reproduzir a sensação de estuprar uma mulher, sem qualquer outra meta além do estupro em si. Além disso, a violência sexual é exercida não contra uma vilã ou inimiga, mas contra uma vítima inocente.

A coordenadora do curso de Jogos Digitais da Uniso, professora Thífani Postali, doutora em Multimeios, analisa a rejeição dos jogadores em relação ao estupro no RapeDay e diz que a problemática desse jogo vai além de uma questão de narrativa.

Professora Thífani Postali – Foto: Arquivo pessoal

Fica mais de entender quando se compara a indústria dos games com a do Cinema da Televisão. “Muitos filmes abordam a questão do estupro só que de uma forma muito mais reflexiva”, diz. “Quando você vai para um jogo que te permite ocupar o lugar de um estuprador, que não tem outro propósito além do de estuprar, isto vai além de uma questão narrativa. É uma questão que está mais relacionada com pornografia”, afirma.

Postali observa que o problema está na mecânica do jogo. “O estupro como mecânica de jogo é inadmissível. Isso é muito diferente de um jogo com uma temática de guerra, no qual você precisa sobreviver. Agora, o jogo buscar reproduzir a sensação de estuprar alguém, isso é muito pesado e gera, com certeza, uma consequência física”, declarou a coordenadora de Jogos Digitais.

Ela ressalta, ainda, que jogar o game não implica que o jogador vá cometer estupro na vida real, mas destaca que isso está causando um impacto muito mais direto em seu corpo. Caniello também acrescenta: “Ver repetidamente o sofrimento de mulheres e os diferentes mecanismos de um estupro, mesmo em um contexto ‘lúdico’ — ou precisamente por causa disso — pode nos tornar insensíveis a esse tipo de violência”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *