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Focando em… Conceilhos de uma Preta Velha

‘Conceilhos’ = conceitos + conselhos

Bença, vó!

Oxalá o abençoe, fio.

Como a senhora está, vó?

Eu tô bem, né, fio?! Num tô mais nessa Terra, né? (sorrindo).

É, vó, no plano espiritual as coisas devem estar bem melhores mesmo.

Mas vamô lá, fio… o que a vó pode ajudar suncê hoje?

Ah, vó, hoje não vim pedir nada, não. Vim mais para te ver, te ouvir, bater um papo mesmo sobre a vida.

Ah, mas suncê ta pedindo, sim. Tá pedindo consêio. E disso a vó entende bem.

Com certeza, vó, a sua linhagem tem muito sabedoria para nos ensinar. Então, eu vou perguntando minhas dúvidas, puxando o assunto e a gente vai conversando, pode ser, vó?

Pode, fio. Suncê vai fazer comigo o que fio fais por aí, cosotro… entrevista, né?

Sim, vó, a senhora acertou. Eu sou jornalista, faço entrevistas.

E preto, o que é mió ainda né, fio? (sorrindo).

Eu estava pensando aqui, vó: no seu tempo não tinha internet, telefone, nada… e, mesmo assim, você e seus cumpadres se comunicavam, né?

É, fio, não tinha nada dessas coisas modernas que suncêis tem hoje. Ah, mais eu e meu povo dava seu jeito de se juntar para conversar como seria as nossas lutas pra sair daquela situação que nóis vivia.

Que legal, vó. Resistência sempre, né? E o que vocês mais conversavam?

Ah, fio, a gente falava muitas coisas. Como, por exemplo, jeitos de mostrar pro povo que não pode ficar perpetuando essas imagens ruins do povo preto. Um povo que foi arrancado de sua terra, escravizado e violentado. 

– Não é fácil ser negro ou negra, né, vó?

Não, fio. Ser negro é resistir à dor, ao sofrimento físico e moral. E também a uma sensação que é muito ruim e a gente sente, tem hora: a de não existir.

Que triste, vó. 

Muita gente não gosta de nóis preto. É uma (in)tolerância que camufla o racismo que ainda existe.

Mesmo fazendo muitos anos que a vó partiu, fio, ainda acontece muita coisa que entristece a vó. A mulhé preta é sempre mostrada como a empregada ou a cuidadora de bebê.

Se os escravos tivessem tido a oportunidade de escrever ou alguém que nem você, fio, que tem os estudo pra ouvi e ponhá no papel, a história seria contada de um jeito bem diferente, o verdadeiro.

Nossa! Quantos ensinamentos legais, vó. Continue, por favor.

Que nem, sobre os quilombos, fio. Lá não era um lugar só de fuga. Lá tinha pessoas que, na África, eram reis, rainhas e princesas. Os livro da escola tem preconceito com o quilombo. Mas o quilombo do Zumbi, por exemplo, era que nem um estado, iguar os que tem hoje.

O povo rico fala mal, mas ia e, ainda vai, compra as coisa de nóis.

Os brancos falam que quilombo é tudo favela. Mas quilombo é historia, é memória, é ser.
Como assim “ser”? Pode explicar melhor, vó?

Nóis tudo SOMOS quilombo, fio. O quilombo não faiz parte dessas terras? A gente não faiz parte dessa terra? Então, somos todos quilombo. O quilombo tá dentro da gente.

Ao contrário do que o povo racista fala, o quilombo tinha até lema: agrupamento, organização, distribuição e amor. 

Que lindo isso, vó, até caiu uma lágrima aqui.

É, fio, pode chora, não tem problema, não. Nossa história é bunita, emociona mesmo.

E os quilombos da África, vó, eram parecidos com os daqui?

O do Zumbi parecia muito, fio. Lá na África, tinha negros fortes que lutavam com os homis brancos, mas eles tinham arma de fogo, aí a gente não conseguia uma disputa justa, né? Tanto na África quanto aqui, fio, o povo tinha a esperança de um país melhor, mais justo, onde houvesse liberdade, união e igualdade. Aqui e lá, os quilombos eram também um lugar pros negro viver o banzo. 

Que palavra suncêis de hoje usa pra banzo, fio?

Ah, vó, pode ser lamento, nostalgia, tristeza, dor da alma ou saudade.

Dor da alma é interessante, fio, mas banzo é mais bunito de falá, eu acho (sorrindo).

A senhora falou em banzo, vó, eu lembrei de um samba da Escola Nenê de Vila Matilde, que se chama ‘Casa Grande e Senzala’.

E como ele é, fio? Cante um pouco pra vó ouvir.

É banzo que nego tem

É banzo que nego tem

Na casa grande, tudo é alegria

Na casa grande, tudo é festança 

Na senzala, nego chora

Chora que nem criança […]

Esse é lindo mesmo, fio.

E o que mais te incomoda sobre negritude que você queira falar, vó?

Esse povo estudado precisa entender que não somos objeto de estudo de cientista. Que não dá pra estudar o negro só por um pedaço da história.

O povo branco, depois de nos arrancá tudo, agora vem dizer que somos ricos de cultura, força, beleza. Eles precisa para de falar que os negros contribuiu para a história do país. A gente ainda contribui. Tem que olhar pra nóis como quem ainda participa dessa formação todo dia.

E tem alguma passagem que te machucou mais, vó?

Um homi branco me falou uma vez que ele era mais preto do que eu porque ele tinha estudado o candomblé e eu não. Olha o que tenho que escuitá, fio! Não é porque o branco estuda nossa cultura que ele pode se dizer negro.

E isso acontece até hoje viu, vó. E todos os dias…

É triste, né, fio? Eu sei bem disso. Mesmo não estando nessas terras mais, eu escuito tudo! (sorrindo). E eu morro de dó dos erê, também, fio. As criança negra sofrem com os estudos por causa do isolamento que os branco faiz com elas.

Isso é verdade, vó. Esses dias mesmo, eu entrevistei uma professora negra aqui da cidade, vó, a Mila de Paula. Ela me disse que a infância é uma fase muito importante. Que ela ama trabalhar com as crianças, pois elas não têm racismo. Somos nós que colocamos isso nelas.

É isso mesmo fio. Muito da esperta essa dona aí.

Ô, vó, esses dias eu ouvi uma pessoa falando sobre a culpa da escravização dos negros ser dos próprios negros, que escravizavam seus irmãos e vendiam eles para o colonizador. O que você tem a dizer sobre isso, vó?

Nossa, fio, no ano que cêis tão, ainda tem gente que fala uma coisa dessas? Credo. O que a vó tem pra falar é que isso é uma bobage. Teve negros que tinha negros como escravos? Teve, sim. Mas comparar com a escravidão feita pelo homi branco é um absurdo. Nela não tinha essa coisa de propriedade sobre o outro. Muitas vezes era porque um povo perdia uma batalha aí ia trabalhar pro outro. Ou era filhos de mãe escrava não resgatados. Ou era por castigo, por quebra alguma norma do grupo. Ou era em troca de proteção pra não ser atacado por outro povo.

Seria então uma “escravidão voluntária”, vó?

Isso, fio. Isso mesmo.

E muitos também pra poder sobreviver, pois se ficassem ali nas terras que perdeu uma batalha, iriam morrer de fome.

Outra coisa que as pessoas faiz, mas não dá pra fazer, fio, é comparação das história. Nosso sofrimento, enquanto povo preto, não pode ser comparado com o de um branco pobre ou um judeu, por exemplo, porque mesmo nessas condições eles ainda são brancos.

Eu às vezes passo por essas bandas e vejo o povo fazendo preconceito por causa de ter mais dinheiro que o preto. Vejo branco chamando as moça de crioula como se fosse por carinho. Ou chega nos casuá, pedem pra preta chamar a dona da casa, sendo que ela é a dona. Òia pá isso, fio.

Isso quando num começam a frase com: ele é preto, mas…

Quando o preto erra falam: é que ele é preto.

Quando acerta: você viu só? Não é porque é preto que não consegue.

A gente cansa, fio, a gente não consegue estar 24 horas por dia preparado para revidar.

Mesmo depois de tantos anos, a senzala ainda está presente.

Nossa vó, que forte essa sua fala. E como você consegue ter esse sorriso no rosto, esse amor fraterno tão forte, mesmo depois de ver todas essas coisas, vó?

Além de ter resistência no sangue, fio, eu sou filha de Oxum, né? (sorrindo).

Uma amiga minha, a Ceição, fez até um poeminha pra mim uma vez. Deixa eu ver se lembro uns pedaço, fio:

A noite não adormece 

Nos zóios das mulher preta

Há mais zóios que sono (porque tem que tá sempre atenta)

Onde lágrimas ficam dependuradas

Que coisa maravilhosa! Vó, o papo tá bom, mas eu preciso ir. Creio que vai ter uma fila de amigos meus que vão querer vir beber dessa fonte que a senhora é.

Que nada fio. A vó é só mais uma mulher preta lutando para ajudar as pessoas nesse mundão de mê Deus. E a vó não tem preconceito, não, viu, fio. Pode falar pros seus amigos que a vó não atende só preto não, viu? Qualquer pessoa pode vir que eu to aqui para ajudar no que fô pussíve.

Muito obrigado, vó. Mas antes de sair, queria te pedir um favor. Qual recado você deixa para a juventude e também para os movimentos negros do nosso país?

Vóis suncê sabe que a vó não só alisa, né? Quando é pra puxa a orelha, a vó puxa. Posso fala, fio?
Claro, vó.

As luta fiarada, num é só racial, é histórica também. Suncêis não pode só trabaiá com as agressividade, tem também que cria uns diálogo de construção e que além de ser compactuante seja impactante.

Anotado, vó! Muito obrigado, vó. Que Zâmbi te receba com imensa luz. Sua benção, vó.

Que seu pai Oxóxi te abençoa, fio. Obrigado também por vir visita a vó. Que Oxalá lhe acompanhe na caminhada.

SERVIÇO:

Caso você tenha curiosidade, essa Preta Velha atende pelo nome de Beatriz Nascimento (também conhecida como Maria Beatriz Nascimento. Isso é sempre bom lembrar, já que, conforme sua amiga Lélia de Almeida Gonzalez, “negro tem que ter nome e sobrenome, senão, os brancos arranjam um apelido…ao gosto deles”).

O endereço do terreiro para se consultar com esta Preta Velha são por meio dos livros: Uma História feita por Mãos Negras e Eu sou atlântica.

Esta coluna foi produzida a partir dos conceitos de obras sobre Beatriz Nascimento, transformando-os em uma conversa entre a autora (representada pela personagem Preta Velha) e o colunista.

E aí, ficou um pouco mais enegrecido?

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