Falas de Nhô João: a universidade e a comunidade na defesa de um legado imortal
Por Ana Carolina Cirullo (Agência Focs – Jornalismo Uniso)
Como parte da programação do “Novembro Negro” da UFSCar, o evento foi organizado para discutir a urgente manutenção dos feitos de João De Camargo para Sorocaba
A data de sua morte é lembrada até hoje. 28 de setembro de 1942, foi o dia em que o homem preto, de rosto magro e olhar carinhoso, faleceu aos 84 anos de idade, deixando para a história o seu legado e seus milagres de cura e benzimento. Com uma conexão espiritual que extrapolava sua simplicidade humana, João De Camargo, Pai João, Padrinho, ou apenas Nhô João, é chamado até hoje por aqueles que buscam seus conselhos e curas que sabem que o Padrinho é capaz de oferecer. Das coisas físicas que João de Camargo construiu e deixou, a capela na avenida Barão de Tatuí é a principal obra de sua comunidade. O local abriga imagens de entidades de diferentes religiões, mas carrega uma única energia que acolhe a todos que chegam até lá: a paz.
Oficialmente, existe apenas um registro de prisão de João de Camargo, no entanto, na história oral de Sorocaba, há a informação de que o líder foi perseguido e preso 18 vezes, por curandeirismo. Numa cidade comandada há séculos pelo ideário de uma modernidade burguesa, falar de Pai João é, até hoje, desafiar as estruturas políticas que tentam apagar a importância de João de Camargo para a história sorocabana. Reforçar seus feitos materiais e imateriais é papel daqueles que sabem do homem benfeitor, do padrinho espiritual e do líder preto que transformou, e ainda transforma, a vida de milhares de pessoas.
Essa é a grandeza do encontro ‘Falas de Nhô João’, organizado pelo Núcleo de Educação, Tecnologia e Cultura (NETC) da UFSCar no último sábado, 09 de novembro. Foi a primeira vez que uma universidade se utilizou do princípio da extensão acadêmica para colocar em pauta a importante (e urgente) manutenção da memória de João de Camargo.
Sob constante desamparo político, a Associação Espírita e Beneficente Capela do Senhor do Bonfim luta, atualmente, pela reforma da capela destruída pelas trágicas enchentes ocorridas em janeiro deste ano, em Sorocaba. Com isso, o evento da UFSCar teve o objetivo de chamar a atenção da população para o descaso municipal que abandona este patrimônio, deixando-o nas mãos de voluntários que tentam reconstruir o espaço e reivindicar o reconhecimento e o auxílio de instituições como o IPHAN, para a valorização dos feitos de João de Camargo.
Vanda Silva, professora titular do curso de geografia da Universidade Federal de São Carlos (campus Sorocaba), junto com Adriano Molina, presidente da Associação Espírita e Beneficente Capela do Senhor do Bonfim, e os historiadores sorocabanos Carlos Cavalheiro, José Rubens Incao e Wellington Ataíde foram os convidados para direcionar o debate daquele sábado. O encontro, que contou com mais de 60 espectadores, iniciou-se com a apresentação de algumas contribuições de cada um dos convidados da mesa para que, na sequência, a conversa se estendesse a todo o público presente. Foi deste modo que novos voluntários se disponibilizaram para ajudar na reconstrução da capela, enquanto outros compartilharam suas experiências de voluntariado em prol de João de Camargo.
Também foi por conta desta dinâmica que detalhes da biografia de Pai João foram expostos pelos pesquisadores. A criação de uma escola na década de 30, que permaneceu até 1960 e serviu para a alfabetização de crianças e adultos, independente da classe social, gênero ou cor, foi um dos feitos lembrados por eles. Um ex-escravizado, analfabeto, que deu valor para o acesso à educação, é mais um exemplo da potência que Nhô João foi na vida das pessoas. E a estrutura da capela que resiste desde 1906 é o exemplo da presença do Padrinho que continua até os dias de hoje.
Wellington Ataíde, historiador e mestre em estudos da condição humana pela UFSCar, enxerga ‘Falas de Nhô João’ com uma grande relevância, pois “ter esse movimento de diálogo, para fora do muro da Universidade, ainda mais tratando a história negra da cidade e as suas possibilidades, nas suas encruzilhadas, se abre os caminhos e abre a vontade de pesquisas e novos olhares”. E a pertinência dessas pesquisas é exatamente o que o presidente da Capela Senhor do Bonfim, Adriano Molina, disse em sua fala de abertura do evento ao enfatizar que “é importante manter a história de pé”, pois como afirmado pelo presidente, “a capela nunca recebeu qualquer auxílio público” e, com este descaso, “querem que se torne um lugar que caia a qualquer momento”.
Neste trabalho de manutenção da história, José Rubens Incao aproveitou a oportunidade do evento para fazer sugestões aos estudantes de diferentes áreas acadêmicas, para que se unam neste propósito do reconhecimento da imagem de João de Camargo para a cultura e a ciência. Aos arquitetos e engenheiros, Zé Rubens sugeriu o estudo da topologia do terreno da capela; aos geógrafos, um mapeamento da presença deste líder carismático na cidade, além também da avaliação do terreno. Para os estudantes de artes, museologia e história, o pedido é pelo empenho na criação do inventário da capela. Também para os historiadores e junto aos sociólogos, a sugestão é por mais pesquisas em torno da presença negra em Sorocaba. Por último, mas não menos importante, o pedido foi para os artistas, para que produzam, componham e encenem mais sobre Pai João.
Essas convocações podem ser mais uma ferramenta para que a sociedade não perca de vista este símbolo de humanidade e espiritualidade que influencia e auxilia muitas vidas. Falar, pesquisar e registrar João de Camargo é não deixar que destruam este legado.
Inauguração da exposição
‘Falas de Nhô João’ também marcou o lançamento de uma exposição fotográfica e de materiais jornalísticos desde 1913 sobre João de Camargo. O conteúdo pode ser visitado até o final de dezembro, na sede do Núcleo de Educação, Tecnologia e Cultura da UFSCar, localizado na Rua Maria Cinto de Biaggi, 130 – Jardim Santa Rosália – Sorocaba.
Universidades Unidas
No final do encontro, a coordenadora do NETC, Neusa de Fátima Mariano entregou para o presidente da Capela alguns exemplares de publicações acadêmicas da UFSCar Sorocaba que tiveram João de Camargo como tema, para que fossem incluídos no acervo da Associação. Um documento com a lista de exigências do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para a entrada no processo de reivindicação de reconhecimento de patrimônio nacional também foi entregue para Adriano.
Representando a Universidade de Sorocaba, a professora Thifani Postali participou da organização e divulgação do evento. O mestrando Rafael Filho e o doutorando Carlos Carvalheiro são alunos do curso de Pós Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e também contribuíram para a realização de ‘Falas de Nhô João’.
Rafael ajudou na identificação das matérias jornalísticas que foram selecionadas para a exposição, e Carlos (que é autor do livro “João de Camargo, o Homem da Água Vermelha”) foi um dos historiadores presentes na mesa do debate.