Jornalismojornalismo onlineSorocabaUniso

Além da Superfície: a Estética que Evoca Corações

Por Gabriela Vasconcelos Fernandes (Agência Focs – Jornalismo Uniso)

All Stars – Foto: Gabriela Vasconcelos

Um par de All Stars de couro, um par de fones de ouvido da Hello Kitty e dois pares de valentia extra – Com açúcar, por favor – para afrontar a timidez diária; nada me descreveria melhor. Prazer em conhecer você, que lê este excerto. Me chamo Gabi – Não, nunca é ‘Gabriela’ – desde que me recordo. Tenho 20 anos e, a partir dos batimentos do meu coração, escrevo, hoje.

Os degraus caem em fileiras de dominó à medida que me aproximo do estacionamento. Pequenas gotículas de chuva (que mais tarde se transformariam em pontos translúcidos colossais) caem e molham o asfalto rachado. Lampejos de raios se misturam com faróis de carros acerejados. Pisando em poças espelhadas, adentro o Gol – Sim, é um carro, não estamos discutindo futebol – que me espera. Sorrindo, o motorista me cumprimenta. Ligando os faróis amarelados do carro, partimos para uma cidadezinha bucólica que conheço muito bem.

Samuel Lima tem a mesma idade que a minha, 20 anos; estuda na mesma universidade que eu, Universidade de Sorocaba (Uniso); crescemos na mesma cidade rural, Ibiúna (SP). Temos muito em comum para compartilhar, mas, até hoje, nunca havíamos nos falado. Usando coturnos pretos e camiseta com figuras de bandas de rock, além de ser meu motorista por esta noite tempestuosa, Samuel me conta sua história.

Eu venho de Ibiúna, nasci em 2004, tenho 20 anos. Sempre gostei de arte, não sei porquê. Os vidros acobreados estão embaçados. Com o indicador, faço rabiscos nas nuvens que se formam pela janela enquanto ele fala. No Ensino Médio, sempre fui meio nerd, sei lá. Não sei em que momento começou, mas comecei a desenhar coisas que eu gostava. Li bastante literatura, pensei em cursar sociologia e, aqui estou, fazendo Direito. Conforme percorremos a estrada, árvores engolem nossa presença. A caligem é infinita, e o único barulho que consigo ouvir é o do motor do Gol acinzentado que nos envolve.

Sempre gostei do homem-aranha, ele é, até hoje, o herói que eu mais gosto. Me serviu muito de inspiração. Ele ri enquanto fala. Seus risos preenchem o silêncio de milésimos atrás. Na minha infância, sofri muito com isso. Os heróis nem sempre me deixavam feliz, entende? Desde que eu nasci, venho consumindo, na maior parte, conteúdos norte-americanos onde a maioria dos personagens sempre foram brancos ou algo assim. A maior dificuldade que eu tenho é a falta de representatividade, porque eu sofri com isso. Ver um personagem que sempre foi branco, de cabelos lisos, era difícil. O herói nunca foi um personagem negro. Era problemático, sabe? Na época que eu brincava com outras crianças e tinha algum outro herói ou coisa assim, e não tinha essa representatividade, acontecia isso: gerava desconforto. Sua expressão se torna dura. Sério, ele observa a estrada infinita. Esse preconceito foi sumindo. Mas, você querendo ou não, parece que nunca some de verdade. Chega uma hora que isso cansa. Eu respiro, e só tento ignorar. Fazendo gestos com as mãos enquanto fala, ele segue noite adentro. Eu, sendo negra, já sofri preconceito. Quando eu estava no fundamental da escola – Sem All Stars desta vez, apenas sapatilhas com fivelas – vivenciei, na pele, o preconceito. Cabelos anelados são sempre parâmetro para algo. Sendo a única menina negra da minha sala, do primeiro ano até o sexto ano do fundamental, aprendi isso. Passando por uma placa verde desbotada, adentramos a cidade de Alumínio (SP).

As calçadas, acostumadas com o andar de passos apressados, são passarelas abandonadas. As luzes dos postes da cidade iluminam crisálidas que toscanejam sob sua vigia. O ar está gelado, denso, cortante. A chuva continua a cair torrencialmente. Me endireitando no banco estofado do passageiro, ouço, avidamente. Inicialmente, eu não esperava ganhar dinheiro com o meu trabalho. Era uma coisa pra expressão, pra mim. Mas depois que eu comecei a estudar jogos, jogos de empresas grandes e ‘tals’, eu comecei a ver cenários. Estudei composição de cena e comecei a ver fundamentos disso. Samuel conta como conheceu a arte e o cenário independente. Demonstrando alegria enquanto compassa seus pensamentos, ele continua. A estética de gente negra não é muito vista, já percebeu? No Ensino Médio, eu era o único menino negro da minha sala. Pra te falar a verdade, eu era o único menino negro da escola. Passamos por um campo abandonado de futebol. A areia do campo, de outrora, não passa de um rio lamacento. A vida inteira isso me seguiu: ‘ser o único negro de alguma coisa’. A minha arte prendeu minha raiva. Ajudou bastante. Até na faculdade eu não vejo muita gente negra, o que é bizarro. Nas brincadeiras da infância, eu nunca podia ser o herói branco ou o herói protagonista, aí eu pensei: ‘mas eu posso criar meus próprios personagens das minhas próprias histórias’. Meu sorriso se alarga. Uma lágrima solitária, que ameaçava cair, retorna para seu lar.

Eu costumo fazer histórias e personagens de qualquer tipo: vampiros, fantasmas e outras coisas desse tipo. Atualmente, tô focado em vampiro. Todos os protagonistas das minhas histórias são negros. A cultura afro-brasileira é enorme, coloco ela em quase tudo; tudo mesmo. Samuel reforça em suas narrativas a representatividade que procura passar para outras pessoas. Esses dias, terminei meu trabalho mais recente: fiz três ilustrações de um cenário autoral de RPG ‘Vampiro: A Máscara’. A ideia é, além de quebrar os estereótipos de vampiros da era clássica, também é trazer o neogótico com vampiros negros. Pela fresta da janela, vejo campos e fileiras de milho, todas alinhadas. Penso na estética. Não a estética que envolve apenas beleza ou vidros de cosméticos aquarela. Existe a estética que toca e evoca corações. Estética que, segundo a estudante de Ciências Econômicas da Uniso, Micaely Cristina Campos de Andrade, de 21 anos, simboliza autoestima. A tarde em que nos falamos estava límpida. Suas unhas, em formato de meias-luas, eram de um vermelho carmesim. A gente reflete por fora, muita coisa que é por dentro, por isso, a estética representa autoestima, mostra sua vontade de continuar o dia, de ter forças pra viver ele. Formada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac-SP), a esteticista Bruna Viana, de 23 anos, (quando nos falamos, ela exalava fragrância capim-limão) também fala sobre a verdadeira essência de se sentir satisfeita consigo mesma. Nada impede que um procedimento ajude você a se revelar como você é. Vai além de beleza, é bem-estar próprio. Atravessando uma ponte suspensa que serpenteia um rio isolado, adentramos Ibiúna.

Descendo do carro, me despeço de meu ex-motorista. Surpresa, recebo minha despedida com um aperto de mão acalorado.Ele dá partida no carro, desaparecendo na escuridão.

A chuva cai serena, sem pressa. Sinto o orvalho do campo invadir meus pulmões. Cigarras cantam serenata à medida que me aproximo de casa. Meus passos formam pegadas no solo molhado. Respirando fundo, adentro o portão que envelhece ao longo do tempo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *