Coluna

“UM IDOSO A MAIS OU A MENOS NÃO FAZ FALTA NENHUMA”

Esses dias estive parando para olhar as efemérides do mês de junho e vi que, no dia 15, era o Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa.

Idosos.

Uma palavra muito falada pela mídia nos últimos dias, devido aos descontos não consentidos que ocorreram no pagamento de milhares de aposentados e pensionistas do INSS.

De quem é a culpa? Hoje não é o espaço para essa discussão.

Exceto em uma reportagem do Fantástico que denunciou as práticas abusivas das empresas de telemarketing contra os idosos, o que mais vi na mídia, redes sociais, até nos botecos e entre os políticos, eram discussões para dizer qual gestão federal era a culpada.

E a reportagem do programa dominical me fez lembrar do tempo em que fui estagiário em dois bancos privados de Sorocaba, onde trabalhei diretamente com empréstimos consignados para aposentados e pensionistas. Nessa época, percebi o quanto este tipo de instituição financeira poderia ser um criadouro de sociopatas. Costumo dizer que, se você consegue “empurrar” um título de capitalização para sua avó de 90 anos, analfabeta e que ganha um salário-mínimo, e ainda assim consegue dormir tranquilamente ao colocar a sua cabeça no travesseiro à noite, a carreira bancária é o seu lugar!

Lembro-me de algum tempo depois de ter saído do banco, ler o livro Trabalhando com Monstros: como identificar psicopatas no seu trabalho e como se proteger deles, do Dr. John Clarke. Nele, o psicólogo fala sobre os “psicopatas corporativos” e, confesso, que visualizei muito do universo bancário nas páginas deste livro. Não sei hoje em dia, mas, naquele tempo, esse tipo de instituição bancária tinha como ferramenta de conversão e sedução os altos salários e grandes benefícios. Conheci pessoas que pagavam a prestação do carro e/ou do apartamento usado apenas os valores dos vales alimentação/refeição, para você ter uma noção da coisa.

Violência contra a Pessoa Idosa, vi muito…

Muitas das reuniões antes da abertura da agência eram à base se gritos, murros na mesa e cobranças para que fossem batidas as metas descomunais de empréstimos. Como? “Empurrando”, forçando empréstimos nos “véinho”. Vi colegas de trabalho, no quinto dia útil do mês, irem trabalhar com decotes ou minissaias para chamar a atenção dos idosos. Isso me fez lembrar de outra banalização dos corpos femininos: teve uma época em que o Bradesco colocava algumas jovens brancas, de cabelos loiros, com minissaias vermelhas curtíssimas para ficarem “atraindo” clientes na porta do banco, na rua São Bento, no centro de Sorocaba. Lastimável.

Vi diversas vezes que a (o) idosa (o) estava sendo “forçada (o)” pelos filhos ou netos para fazerem o empréstimo, mas a ganância e a sede para bater a meta e ganhar a comissão cegavam alguns colegas de profissão. Houve situações em que éramos obrigados a ligar para os aposentados dizendo que eles precisavam ir à agência naquela semana sem falta, para fazer uma “prova de vida”, com risco de perderem o pagamento, quando, na verdade, era para oferecer empréstimos.

Eu era o “estagiário que nunca batia a meta”. Me arrependo de não ter saído desse mundo corporativo antes, mas, desse “título”, não me arrependo não. Nunca forcei ninguém a fazer um empréstimo. Fui cobrado diversas vezes por, ao invés de oferecer uma renovação do empréstimo corrente — em que, por exemplo, um aposentado que tinha apenas 18 parcelas para quitar um empréstimo assinava um novo contrato de 60 parcelas, em que se somava o saldo devedor e a dívida ia se “perpetuando” —, oferecer um novo empréstimo à parte, sem aumentar o número de parcelas do anterior, o que diminuía o lucro da instituição, obviamente.

Durante o dia, eu ligava para uma lista de 60 idosos oferecendo empréstimos — tinha até “cursinho” de persuasão para mostrar que não era um empréstimo, e sim a possibilidade da realização de sonhos! Olha que lindo! Só que não. Ao final do expediente, eu relatava para meu supervisor que nenhum deles aceitou o “presentão” que eu queria entregar, mas a orientação que eu recebia era para ligar novamente para TODOS eles no dia seguinte e “forçar ao máximo a venda”.

No primeiro banco, não fui efetivado (por qual motivo será?). Enquanto eu me autoflagelava por, ainda que por um segundo, ter pensado em “enfiar” um seguro no meio de um empréstimo, colegas que não tinham esse tipo de pudor eram ovacionados. Mas não foram somente dias ruins. Acho que eu ajudei muitos aposentados e pensionistas ao desmascarar algumas práticas de agentes financeiros menores, as chamadas “portinhas de empréstimo” que se amontoavam na rua XV de Novembro, também no centro da cidade.

Muitos idosos tinham seus pedidos de empréstimos negados por falta de margem quando eu enviava para o INSS, e eles me diziam: “Mas moço, eu não fiz mais nenhum empréstimo. Como não tenho margem? Tá errado isso aí”. Aquilo me cortava o coração. Como as coisas não batiam, comecei a me questionar todos os dias — olha o meu lado jornalista investigativo aflorando e eu nem sabia — sobre o que poderia ser. Um dia, pedi para um aposentado me trazer o contrato do empréstimo que ele havia feito em uma das portinhas. Fui no INSS e, por meio de uma conversa informal com o vigilante, descobri a existência de um extrato detalhado de empréstimos, um documento que somente o idoso poderia pegar, e de maneira presencial exclusivamente. Fui muito criticado na época, pois eu “estava ali para vender e não para ficar ajudando véinho sem margem” — sim, para muitos bancários, os idosos não eram vistos como seres humanos, mas sim como “máquinas geradores de lucros” —, mesmo assim, não desisti.

O que descobri? Que havia uma cláusula nos contratos, autorizando a renovação automática do empréstimo. Perguntei para o idoso se ele havia assinado o pedido de um novo empréstimo, e a resposta foi negativa. Questionei: “No dia tal, não caiu um dinheiro na sua conta?” E, geralmente, o retorno era: “Sim, fio, caiu. Mas eu achei que era um abono e usei o dinheiro. Não sabia que era empréstimo, não”. Outra descoberta que fiz foi a da existência de um “cartão de crédito para aposentados e pensionistas fornecido pelo INSS”. Obviamente, nenhuma das pessoas por mim atendidas sabia dele. Qual era o pulo do gato, para não chamar de golpe: ao ser solicitado, esse cartão “reservava” 10% da margem do idoso, ou seja, mesmo que ele nunca usasse o cartão, enquanto não o cancelasse, a margem máxima de 30% era sempre reduzida para 20%. E para que isso? Para “amarrar” o aposentado naquela instituição bancária, para que ele não pudesse fazer empréstimo em outros lugares. Quando ele fosse na instituição que solicitou indevidamente o cartão, lhes era dito: “Aqui o senhor consegue. Consegui abrir um pouco da sua margem. Vou te liberar uma graninha, viu como eu sou legal?”

E todos esses pensamentos sobre a temática dos idosos me fez reviver um texto que escrevi sobre eles, no começo da pandemia de Covid-19, no ano de 2020. Faço questão de trazê-lo na íntegra:

      Apesar de parecer algo que jamais pensamos em ouvir, a frase que intitula este texto foi ouvida por mim nas minhas caminhadas diárias, ao ser divulgado o número de anciãos que faleceram na Itália e a dimensão de mortes que podem ocorrer no Brasil. A pandemia de Covid-19, além de todos os problemas que a cercam, nos traz uma reflexão sobre o comportamento humano. Ela escancara âmagos que carregam os mais enojáveis pensamentos e sentimentos de alguns dos seres que habitam esta Terra, os quais não sei se posso chamar de humanos.

     Ao proclamar comentários como: “já viveu o que tinha que viver”, “que morra tudo, é um velho a menos pra encher o saco”, esquecem o peso da falta que essas pessoas farão no mundo. Se hoje estamos aqui, se temos confortos, é porque, no passado, esses indivíduos lutaram arduamente para alcançar conquistas, muitas vezes sem nenhuma ferramenta as quais hoje nos sobram. Muitos netos não poderão colocar seus filhos no colo de seus bisavôs. Quanta cultura, quanta história, quanta riqueza imaterial está sendo queimada junto com os corpos de nonos e nonas. Quantas receitas de massas e molhos “secretos” estão se perdendo, causando inenarráveis prejuízos, não somente para a Itália, mas também para o mundo. Os crematórios não estão produzindo só cinzas carnais, mas também cinzas mentais na memória dos que ficam. Muitos esquecem que países com grandes quantidades de mortes precisarão de pessoas de outras origens para sua reconstrução e repovoamento, o que, por um lado, é bom, devido a inserção de novas culturas; por outro, nem tanto, já que a cultura de origem nunca mais será a mesma, por mais antropofágico que seja o novo integrante.

     Na esfera nacional, não devem ter sido pensados os danos antes de se cometer tais ofensas. O que seriam dos filhos de trabalhadores se não existissem mais os avôs para cuidá-los durante o dia de labuta? Quantas crianças deixarão de ser curadas através das rezas e remédios caseiros das avós benzedeiras? Já se imaginou um dia não existir mais pessoas para contar fatos que ocorreram há 50, 60 ou 70 anos atrás? Onde, por mais inovadoras que sejam, e mesmo sendo alimentadas por um grande cânone de informações, as ferramentas de busca não chegam e a única prova é a memória viva. Como seria para um amante de futebol não ter ninguém para contar como foi a copa do mundo do ano de 1970 ou o fim do jejum corintiano em 1977? Para um estudante de comunicação, quem foi Chacrinha? Para um fã da cultura nacional, quem foi a figura de Carmen Miranda? Ou, para um historiador, como foram os tempos da ditadura militar? Como responderemos aos nossos filhos no futuro, quando questionados sobre qual é a sensação de um abraço de vó?

     Antes de falar tais coisas, é necessário ter a verdadeira empatia. Digo verdadeira pois existem muitas empatias ilusórias, em que o ser humano pensa que está praticando e engana muitos outros através de postagens em redes sociais, por exemplo, as quais trazem falsos resultados benéficos. A empatia que me refiro é a de se pensar que, por mais difícil que esteja a vida das pessoas, muitas ainda podem caminhar nas ruas, enquanto outras estão presas dentro de casa devido às suas pernas terem sido amputadas pelo perigo de ser um integrante do grupo de risco. A mesma empatia que deve ser levada em consideração antes de se criticar um idoso que esteja nas ruas, mesmo após diversos alertas.

     Empatia esta que deve nos levar à reflexão do porquê daquele indivíduo estar quebrando a regra. Será mesmo somente teimosia? Ou pode ser um pedido inconsciente de socorro? Estará mesmo somente desobedecendo os conselhos dos órgãos de saúde ou querendo que nossos olhos percebam sua figura, juntamente com um pedido de clemência por ajuda, oriundo de um mínimo de consciência que ainda lhe resta em sua mente cansada pelos anos? Ajuda esta, muitas vezes, para se livrar do sofrimento causado pela desorientação genética que a velhice traz, ou pelo abandono familiar que o aflige.

     Esta pandemia serve para nos mostrar também que a falta de sentimentos, de carinho e de amor para com o próximo, o egoísmo, o despreparo daquele que nos lidera, a mesquinhez, a desvalorização dos profissionais de saúde, o descaso com os impotentes sociais e a banalização da vida humana são também vírus que afetam e podem exterminar toda a população deste planeta.

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No segundo banco em que trabalhei — fui seduzido inicialmente pela proposta de abandonar o emprego de segurança de hospital, trabalhando 12 horas por dia, para trabalhar 6 horas e ganhar o dobro —, a função oferecida não era para trabalhar com consignado diretamente. Promessa que não foi cumprida, após alguns meses em que eu já estava lá. Antes de terminar o contrato, pedi demissão, não aguentava mais. Me foi oferecida a efetivação, agradeci, mas não aceitei. No último dia, o gerente-geral me fez uma derradeira proposta: “Você sabe que está perdendo de fazer o seu pé de meia aqui, né? E que pessoas brigam lá fora por essa vaga.” Dei uma resposta a ele que, se pareceu mal-educada, não foi minha intenção: “Agradeço, mas não adianta nada eu ter muito aqui (apontando para o meu bolso) e pouco aqui (apontando para minha cabeça).”

Isso foi libertador! Lavei minha alma.

E, para fechar a coluna de hoje, mostrando que não existem somente violências contra a pessoa idosa, mas também muito afeto, carinho e quebra de paradigmas por chegarem aos 60, deixo um comentário e uma indicação de leitura:

1 – Ao comentar sobre o tema da coluna desta semana com uma professora, ela comentou sobre uma postagem de uma amiga dela, onde, ao invés de escrever que estaria completando 57 anos, ela comentou: “estou completando 3 para 60”, ou seja, chegar aos 60 não era para ela um “tabu”, uma preocupação, e sim uma comemoração! Acho que também vou aderir a essa moda, no meu aniversário, o mês que vem, vou dizer que estou completando 22 para 60. Muito bom isso!

2 – Indico a leitura do magnífico livro EnvelheSer, da minha amiga/irmã e jornalista Beatriz Jarins, que fala das histórias e rotinas de pessoas idosas, com muito respeito, amor, carinho e afeto. Através do trabalho de Beatriz, você pode ter acesso a frases e citações fortíssimas, como:

“Por que temos que lutar pelos velhos? Porque são a fonte
de onde jorra a essência da cultura, ponto onde o passado
se conserva, do presente se prepara
”, (BOSI, 1994, p. 18, apud. CHAUÍ, 1979).

O velho não tem armas. Nós é que temos de lutar por ele”, defende EcléaBosi, fala relembrada por Marilena de Souza Chauí (1979), na apresentaçãodo livro: Memória e Sociedade, da própria Ecléa.

Conheça o livro por meio do site: https://beatrizjarins.com/envelheser, ou do Instagram: @livroenvelheser.

Respeite os nosso idosos. Respeite nossos Griôs. Respeite nossos ancestrais. Respeite quem veio antes de nós. Respeite quem capinou o caminho que hoje você cruza confortavelmente.

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