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Consciência Negra: será que a temos?

O mês da consciência negra na cidade de Sorocaba começou com mais um dia de lágrimas para uma família e revolta entre a população. O jovem negro Vitor Nascimento Carvalho, de 21 anos, foi assassinado por um segurança de um clube de kart da cidade. Segundo testemunhas, Carvalho estava tentando apartar uma briga, quando foi covardemente alvejado pelo segurança. Neste novembro, também, completa um ano da morte de João Alberto Silveira Freitas, na época, com 40 anos. Ele morreu exatamente na data comemorativa, após ser brutalmente espancado por dois seguranças brancos em uma loja de uma rede de hipermercados francesa, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Mesmo após tantas campanhas e o acontecimento de tragédias como as aqui citadas, ainda ocorre em nossa sociedade a falta de consciência sobre as questões raciais que afligem todo o mundo. 

Isso faz com que, mesmo após tantos anos da abolição da escravatura, o povo negro tenha que replicar – aos prantos, e com a força trazida pela resistência – a frase de George Floyd “I can’t breathe” (Eu não consigo respirar!). Desta forma, tais questionamentos são inevitáveis: Qual é a função do dia 20 de novembro? Quem foi Zumbi dos Palmares? Por que existe o genocídio negro? Para responder estas e outras indagações é necessário refletir sobre temas como a Necropolítica (termo criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para explicar a fragilização de determinados grupos que estão em situação de desigualdade, violência e etc.,  através do uso do poder político e social, principalmente por parte do Estado, para determinar, através de ações ou omissões, quem pode ficar vivo ou quem deve morrer), mas principalmente, revisitar parte do contexto histórico dos negros no Brasil, como a abolição da escravatura e seus desdobramentos.

A falsa abolição

Mariana Ribeiro: “Que abolição é essa? Que dignidade humana você tem em um contexto onde você não recebeu nenhuma infraestrutura para sobreviver? ” Foto: Rafael Filho

“Disseram que a Áurea foi assinada para libertar. Mentira! Foi pura hipocrisia, pois nenhum Negreiro obteve volta ao lar”. O trecho da música Raízes, lançada pelo sambista sorocabano Claudio Silva no último mês de abril, reflete um dos mais diversos problemas que persistem mesmo após a assinatura da Lei, pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Já, para a historiadora sorocabana Mariana Alice Pereira Schatzer Ribeiro, é preciso repensar sobre a idolatria que existe em relação à imagem da princesa Isabel, como uma salvadora, uma santa redentora. Visto que ela apenas assinou a lei, devido a grandes pressões para o fim da escravidão no final do século 19. “Muito se fala sobre a princesa Isabel, mas é esquecido o protagonismo dos negros na história. Antes da assinatura da lei, muitos fatos ocorreram. A força de intelectuais, de membros da imprensa e a revolta de homens e mulheres escravizados, contribuiu muito para a luta pela abolição”, afirma Ribeiro.

Doutora em História pela Unesp de Assis/SP, Mariana Ribeiro comenta sobre o termo que vem sendo muito utilizado dentro da historiografia nos últimos 40 anos, defendendo que ele é válido, pois a lei da abolição da escravatura possuía grandes falhas. “A lei Áurea dizia apenas que a partir daquela data, todos os escravizados do império brasileiro se tornariam livres. Mas ela só disse isso. Não houve nenhuma política pública com relação à moradia, à educação, ao contrato de trabalho, à saúde e etc., para atender toda essa população que vivia no Brasil. Então essas pessoas foram abandonadas, sem perspectiva futura de melhoras”, declara. A professora explica, também que, essa falta de cuidados com os libertos, frequentemente os forçou a permanecer nas fazendas onde já viviam ou em seus locais de trabalho na cidade, muitas vezes sem receber nenhum tipo de remuneração, dependendo da moradia cedida pelos senhores. “Então, que abolição é essa? Que dignidade humana você tem em um contexto onde você não recebeu nenhuma infraestrutura para sobreviver? ”, questiona.

Silva, que além de produtor cultural, é pesquisador e divulgador dos mais diversos assuntos referentes à cultura africana, acredita, também, que exista uma falsa abolição, pois os negros que deixaram de ser escravizados não tiveram um projeto de inserção social. Ele salienta que, fatos como a lei da vadiagem e a repressão à capoeira, demonstram que a elite quis impor a manutenção dos seus privilégios. 

“Os japoneses, italianos e demais imigrantes europeus que vieram trabalhar no Brasil, principalmente nas lavouras, eram remunerados, mas os negros não. A abolição ocorreu depois de várias protelações da elite escravagista, que criou leis para tentar enganar as cobranças – como por exemplo as geradas pela Coroa Inglesa – pelo fim da escravidão. E isso surte efeito até hoje. Quantos negros você vê estudando em uma faculdade? E um negro professor universitário? ”, indaga Silva. 

Ele comenta também sobre a necessidade de se difundir cada vez mais essas situações. “Na Alemanha, por exemplo, apesar de se envergonharem do Nazismo, ele é um assunto discutido sempre nas escolas, para que isso não venha a ocorrer novamente. Foram quase 400 anos de escravidão, o Brasil foi o último país do mundo a aderir ao fim dela. Isso tem que ser lembrado sempre, pois a desigualdade social ainda é implacável, letal com relação ao povo negro”. 

Claudio Silva: “A desigualdade social, ainda é implacável, letal com relação ao povo negro”. Foto: Rafael Filho

Citando o livro As Trapaças da Sorte: Ensaios de História Política e de História Cultural da autora Isabel Lustosa, Silva comenta um fato que reforça ainda mais a existência de uma falsa abolição. “Um ano antes da Abolição, na cidade de Campinas/SP, fazendeiros foram fazer um pedido para a regente, para que fosse utilizado o exército na caça de escravos que fugiam de suas propriedades. Isso demonstra como a elite escravagista se utiliza do estado, desde aquela época até hoje, para manter sua dominação, além de comprovar que abolir a escravidão não era a intenção da época, e sim, algo assinado por obrigação”.

“Ainda carregamos o fardo e as consequências dos 300 anos de escravização de seres humanos em nossa sociedade. Temos que combater essa falsa abolição, que deve ser propagada aos quatro cantos, para que todos saibam que ela nunca existiu. Hoje em dia, temos que lutar contra outro tipo de escravidão: a escravidão intelectual. Ela faz com que muitas pessoas não percebam a falta de inserção social e, principalmente, a falta de oportunidade para qualquer afrodescendente. E isso está muito latente na atualidade” explica Silva.

Trabalhos domésticos

“Eu posso falar pois senti isso na pele. Sou filho de uma cozinheira que trabalhou por muitos anos na casa de uma família Libanesa. O filho de uma doméstica é visto apenas como uma pessoa que no máximo irá se tornar o motorista ou o segurança da família” conta Silva. Segundo ele, muitas famílias ou clãs de famílias de classe alta, têm a visão de que seus filhos se tornem médicos ou juristas, por exemplo, o que é algo inalcançável para um jovem pobre. “Mesmo que com muito esforço você consiga entrar no ambiente dos filhos do patrão e comece a estudar medicina, por exemplo, você será discriminado. Será feito de tudo para você desistir, sendo forçado a sair. Pois até os pais dos seus colegas de classe irão se sentir incomodados com um afrodescendente ou filho de empregada no meio deles”, desabafa Silva.

Questionada sobre o porquê até os dias atuais, a maioria das pessoas que exercem serviços doméstico são negras e principalmente mulheres, Ribeiro faz um resumo histórico e aponta que, desde o século 19, a exploração do trabalho, seja através dos indígenas, escravizados ou dos imigrantes, foi muito defendida como algo necessário para o desenvolvimento do país. Mas esse desenvolvimento beneficiou na verdade, somente as elites dominantes, grupos políticos, fazendeiros e etc. Ela salienta que mesmo com tantas transformações que vivenciamos, como a terceirização, mudanças nas legislações trabalhistas, houve muitos governos que não se dedicaram de fato a essas questões, o que faz com que a luta por dignidade, que ocorre desde o século 19, tenha que continuar até os dias atuais.

 “Ainda vivemos consequências desses nós tão emaranhados da escravidão em nosso país. Principalmente no trabalho doméstico, onde em pleno século 21, a grande parte é feita por mulheres negras, com baixa qualificação e que muitas vezes estão submetidas à ideologia da casa grande, do servir, da coação, da humilhação”, explica Ribeiro. Ela comenta sobre o país ter demorado muito para apoiar essa classe, citando que a legalização e a organização de direitos e garantias dos trabalhadores domésticos só ocorreram em 2013, através da PEC das Domésticas (Emenda Constitucional 72/2013) e que isso causou, na época, muita discussão e um choque, principalmente, entre as classes média e alta, pois os custos para estabelecer garantias para esses indivíduos seriam altos. Ribeiro defende que essas pessoas permanecem nesses tipos de trabalhos, porque estão ligados à falta de qualificação e de estudos e isso esbarra nas questões do desenvolvimento e incentivo ao acesso a uma educação pública de qualidade.

Claudio Silva: “O filho de uma doméstica é visto apenas como uma pessoa que no máximo irá se tornar o motorista ou o segurança da família”. Foto: Rafael Filho

“Essa desigualdade de acesso à educação é antiga. Até a era Vargas, aproximadamente 1930, os libertos não tinham acesso a escola pública de qualidade, isso era destinado apenas à classe média e à população branca. Esse direito foi negado ao povo afrodescendente durante muito tempo. E isso reverbera por gerações. Nos últimos 15 anos, tivemos mudanças como o acesso da população afrodescendente às universidades. Mas apesar de muito positivo, ainda temos muito a se fazer”, argumenta Ribeiro. Defendendo a ideia de que o país tem a sua base social, econômica e cultural pautada em um passado escravista, a historiadora faz uma ligação com a questão da democracia racial. Que apesar de ser defendida por Gilberto Freire no início do século 20, e por outros teóricos, na sua visão, ela não existe de fato. “Nós sabemos que ela é uma falácia. Que democracia racial é essa onde essas populações mais pobres não têm acesso a um ensino público de qualidade, para que possam alcançar o ensino superior e se manter no curso? As políticas afirmativas estão aí para nos ajudar a responder”, declara Ribeiro.

O Surgimento das favelas

O desamparo sofrido pelos recém libertos gerou vários desdobramentos. É possível estabelecer, por exemplo, uma ligação com o surgimento das favelas. Segundo Ribeiro, existiram dois fatores fundamentais para isso. Um deles, foi a destruição de vários cortiços na cidade do Rio de Janeiro em 1893, dentre eles, o maior de todos, conhecido como “Cabeça de Porco”. Essas comunidades eram formadas tanto por imigrantes e brancos pobres, como por negros que haviam acabado de sair da escravidão. Essas destruições vieram após ordem do então prefeito – influenciado por vanguardas europeias e pela concepção da Belle Époque – que tinha a intenção de embelezar a cidade, transformando-a em uma “Paris dos Trópicos”.

 Outro fator determinante, foi a Guerra de Canudos (1896-1897). Após o seu final, a Marinha brasileira cedeu terrenos para que os soldados que retornaram da guerra, pudessem estabelecer suas moradias. “O termo favela corresponde a uma região do sertão baiano, onde havia uma mandioca conhecida como brava ou fava”, explica Ribeiro. Essas pessoas foram forçadas a viver na região periférica da cidade, em morros como por exemplo o morro do Livramento, que depois passou a se chamar morro da Providência, considerado a favela mais antiga do Brasil. “Apesar da grande difusão cultural gerada pela população do morro do Livramento, que era formada por libertos, pobres, marinheiros, estivadores, imigrantes etc., é preciso deixar claro que esses grupos sociais foram obrigados a viver às margens da sociedade. A intenção da época é a mesma até hoje: a de negação da existência destas pessoas, de torná-las invisíveis” defende Ribeiro.

 Para a professora, essa exclusão social tem o intuito de afastar essas pessoas do alcance do poder público, o que faz com que suas demandas de saneamento básico, de moradias de qualidade, de educação e etc., não sejam atendidas, silenciando os seus sofrimentos. “As favelas são locais que não recebem atenção das autoridades, então o que acontecer com eles lá, não tem problema, haja vista as diferentes formas de repressão policial, massacres, chacinas retratadas todos os dias na mídia. Isso só vai mudar quando as autoridades mudarem suas concepções sobre essas populações” comenta Ribeiro.

Definindo as favelas como uma herança do passado escravista, Ribeiro comenta que muitos autores as comparam com um navio negreiro, no sentido de invisibilidade e anulação do ser humano, nos seus direitos mais básicos e dignos. Também é preciso lembrar que a maioria dos moradores das favelas, são pessoas trabalhadoras, honestas, que buscam sobreviver em meio a esse país com tantas desigualdades sociais”, complementa Ribeiro.

Abolição em Sorocaba

Autora do livro “Entre a fábrica e a senzala: um estudo sobre o cotidiano dos africanos livres na Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema – Sorocaba – SP (1840-1870)”, Ribeiro conta que a luta contra a escravidão em Sorocaba se deu pela união de diversos fatores, como o sentimento de revolta dos escravizados, o protagonismo negro, as fugas das fazendas, principalmente da Fazenda Ipanema e dos quilombos à sua volta. Foram de grande importância, também, a atuação de intelectuais, profissionais liberais, negociantes e até mesmo fazendeiros, que se tornaram abolicionistas. 

Dentre eles, é possível destacar nomes ilustres como Luís Matheus Maylaski, Ubaldino do Amaral, George Oetterer, Nogueira Padilha e pessoas ligadas à loja maçônica Perseverança III. “Por volta de 1885, com o surgimento da Estrada de Ferro Sorocaba, os abolicionistas começaram a divulgar a ideia de que ter como mão de obra trabalhadores assalariados, seria mais vantajoso para a cidade do que a mão de obra escravizada”, afirma Ribeiro. Ela complementa dizendo que os abolicionistas começaram a divulgar na imprensa sorocabana e da região – principalmente com a ajuda do jornal Diário de Sorocaba, do Clube Palestra, do Clube Emancipador – manifestos e pequenos atos em busca dessa emancipação. Alcançando êxito em dezembro de 1887, quando a maioria dos senhores da cidade já haviam libertado todos os seus escravizados. 

“Tudo isso está registrado no livro de atas do Clube Emancipador, que se encontra sob guarda do Gabinete de Leitura Sorocabano. E Sorocaba não foi exclusividade, muitas cidades da região também tiveram a mesma atitude, o que reforça a ideia de que o fim da escravidão não partiu da princesa Isabel, mas sim, dos protagonismos negros e do movimento abolicionista”, comenta Ribeiro. Ela afirma, também, que para se chegar a grande demanda industrial que a fez conhecida como Manchester Paulista, Sorocaba deve muito aos trabalhos iniciais que ocorreram na Fábrica de Ferro Ipanema e posteriormente a Fábrica de Chapéus.

Segundo a historiadora, Sorocaba ainda tem poucos exemplos de territórios negros, para guardar e sempre estar enaltecendo essas memórias. “Temos locais importantes como os clubes Quilombinho e Vinte e Oito de Setembro e a Capela de João de Camargo. Mas são localidades que, muitas vezes, a sociedade sorocabana só se lembra em datas como treze de maio e vinte de novembro. Enquanto que espaços de outras nacionalidades são valorizados o ano todo, recebem incentivo e estão sempre participando de discussões na mídia”, aponta Ribeiro. Ela complementa que, apesar da grande contribuição de imigrantes espanhóis, italianos, japoneses e etc., Sorocaba também foi uma cidade construída por negros, com sua cultura, religiosidade, influências, e isso, precisa ser mais divulgado e valorizado.

Quem foi Zumbi dos Palmares?

Ribeiro, conta que Zumbi nasceu em 1655 no estado de Alagoas. Aos sete anos de idade, foi capturado e como a maioria dos escravizados brasileiros, foi obrigado a receber o batismo e o nomearam como Francisco. Desde muito jovem, dedicou-se às resistências dos cativos frente às opressões dos colonizadores. Em Pernambuco, aproximou-se de uma liderança bastante conhecida: Ganga Zumba, a fim de planejar a liberdade dos escravizados das fazendas e dos quilombos. Posteriormente, dirigiu-se à Serra da Barriga, na capitania de Pernambuco e iniciou a organização dos Quilombos de Palmares (que atualmente é parte do município União dos Palmares- AL). 

“Vale lembrar que Palmares foi um conjunto variado de quilombos, diferentemente do que a maioria das pessoas acreditam”, detalha Ribeiro. Em 1680, Zumbi tornou-se líder dos quilombos e comandou as invasões contra os portugueses. No entanto, após muitos conflitos, foi capturado e degolado aos 40 anos de idade, no dia 20 de novembro de 1695. “A exibição da sua morte e do seu corpo representou aos colonizadores uma grande conquista, a qual deveria servir de exemplo aos demais africanos e escravizados”, destaca Ribeiro. No entanto, os planos dos portugueses e bandeirantes não tiveram tanto êxito e Zumbi foi considerado um símbolo de resistência pela população africana e afrobrasileira.

 “Zumbi foi um símbolo de governança, organização, liderança, valentia e resistência em meio ao projeto colonizador”, afirma Ribeiro. Segundo ela, os quilombos buscavam reproduzir os costumes vivenciados em suas regiões de origem na África, abandonadas em meio à diáspora transatlântica. Sendo assim, estabeleciam-se em grandes grupos, detinham o uso coletivo da terra, praticavam os seus cultos, etc. Questionada sobre o porquê de uma grande parte da população ainda não reconhecer a importância de Zumbi, tendo até sua imagem sendo desrespeitada pelo próprio presidente da fundação que carrega seu nome, Ribeiro explica que toda sociedade estabelece os seus símbolos, mitos e tradições. Desta forma, os personagens também são construídos ao longo do tempo, cuja função é representar os anseios de um povo, em determinada época e local.  “Considero as opiniões contrárias à relevância de Zumbi, como práticas preconceituosas, haja vista que, diversos personagens, primordialmente, brancos com suas lutas eternizadas pela História não sofreram grandes questionamentos pela sociedade”, complementa Ribeiro.

 “O fim de Zumbi veio com apoio do governo federal, ao ser morto pelas mãos de Domingos Jorge Velho”. O comentário de Silva pode ser utilizado para se fazer uma analogia aos dias atuais e a Necropolítica já citada no início deste texto. Para Silva o povo negro tem que se apegar a Zumbi, como um símbolo de que a única forma de superar as dificuldades, é resistindo a tudo e a todos. “Os governantes da época, tinham muito medo da força que o Quilombo dos Palmares tinha, do seu poder de resistência. O receio deles era de que o quilombo pudesse fazer uma revolução, igual a que ocorria no Haiti na mesma época”, explica Silva. Segundo ele, mesmo Zumbi tendo sido um herói para o povo de matriz africana, conseguindo por exemplo, resistir a 67 tentativas de invasões para destruição do Quilombo dos Palmares, ele ainda não é reconhecido por grande parte da sociedade, porque ela tende a exaltar os algozes e não aqueles que lutaram pela resistência de um povo. “Se você procurar no interior de São Paulo, os grandes heróis são os algozes do povo preto, dos índios. Em Santana do Parnaíba por exemplo, você encontra reverências aos tropeiros. Em Sorocaba, à Baltazar Fernandes”, detalha Silva 

Zumbi e Dandara, ilustração da Agência Tribuna União. Fonte: The Intercept.

“Dandara não foi apenas a esposa de Zumbi”

Conforme explicação de Ribeiro, a origem de Dandara é amplamente discutida pela historiografia, e muitos acreditam que ela era da comunidade jeje mahin na África Meridional. Ela foi responsável por liderar as atividades cotidianas de Palmares, especialmente a caça e a agricultura. Também atuou na proteção do quilombo, liderando o uso das armas entre homens e mulheres. “Infelizmente, muitos a conhecem de uma maneira reducionista como apenas ‘a esposa de Zumbi’. Acredito que é preciso valorizar também as experiências autônomas das mulheres, através do reconhecimento de suas trajetórias individuais e, não somente, aos fatos vivenciados em meio às atuações masculinas” destaca Ribeiro. Segundo ela ainda, antes de ser esposa de Zumbi, Dandara foi um indivíduo com personalidade própria, anseios, dificuldades e conquistas. “Dandara preferiu a morte a tornar a viver como escravizada e, assim que foi capturada, se jogou de uma pedreira ao abismo”, conclui Ribeiro.

“Dandara também teve um papel fundamental, porque não tem como você resistir com uma esposa que apenas cuida do lar. Ela foi uma guerreira que lutou junto literalmente”, declara Silva. Ele salienta ainda que antes de Dandara, a resistência negra teve uma outra mulher que foi uma figura de grande importância: a princesa africana escravizada Aqualtune, que subiu mais de nove quilômetros grávida em uma mata fechada para chegar ao quilombo. Segundo Silva, as tentativas de tirar do negro o protagonismo são antigas, e ainda permanecem. “O clássico da literatura e da dramaturgia, Macunaíma, é um grande exemplo. O protagonismo era todo do Grande Otelo, mas foi transferido para o Paulo José que era branco. Isso causou grande tristeza no Grande Otelo”, detalha Silva.

O dia 20 de novembro

Com relação à data comemorativa, a professora explica que o reconhecimento e a reivindicação da memória de Zumbi, estiveram ligados às lutas do Movimento Negro Unificado (MNU), cujos ativistas na cidade de Salvador em 1978, acordaram o dia 20 de novembro como a data essencial para se recordar as lutas da população afrobrasileira. Por sua vez, o dia da Consciência Negra foi fruto da lei 10.639, sancionada pelo presidente Lula em 2003, a qual estabelece o ensino de História e Cultura Afrobrasileira como componente curricular obrigatório na educação básica. Entretanto, sua oficialização ocorreu em 2011, no governo de Dilma Rousseff, através da Lei nº 12.519.

“A concretização da data é de extrema importância, haja vista que ainda existem inúmeros paradigmas preconceituosos em nossa sociedade, pautados pela desinformação e o racismo” define Ribeiro. Ela salienta também que, ainda hoje, muitos livros didáticos e produções culturais abordam os africanos e afrobrasileiros como indivíduos sofredores e ausentes de articulação, inteligência e anseios. “Relembrar a memória de Zumbi, é valorizar a luta de homens e mulheres que resistiram de inúmeras formas, mediante os meios que possuíam, como protagonistas e sujeitos de suas histórias”, defende Ribeiro. 

RAFAEL FILHO

(AGÊNCIA FOCS / JORNALISMO UNISO)

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