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Travesti: feminina. Até que ponto para a mídia?

Travesti. O que é ser travesti? Antes de tudo, é ser humano. Quando ouve esta palavra, consegue imaginar alguém que não está ligada a um contexto de marginalidade, prostituição precária e exclusão social? Se o que vem à sua mente é apenas “um homem vestido de mulher”, volte à expressão ser humano. Se esse não é o seu pensamento, prossiga! A identidade de gênero não é algo amplamente entendido e aceito na sociedade, principalmente a identidade das travestis, que comumente são tratadas como ‘o’ travesti, ou tem a sua identidade ‘travesti’ utilizada como sinônimo de ‘prostituta’. A imprensa, ao noticiar casos de violência ou morte de travestis, – segundo autores, esta é uma das únicas ocasiões em que são notícia – reproduz esses estereótipos em seu discurso. A forma correta de mencioná-las é utilizando o artigo ‘a’ travesti, pois elas são uma identidade feminina. Os veículos de comunicação e jornalistas vem se adequando aos poucos, em breve checagem, o respeito com a identidade de gênero começou a ser adotado pela maioria dos veículos de comunicação a partir de 2013. Mesmo com a adequação, a travesti é feminina para a mídia até que ponto?
Durante a análise de uma série de matérias sobre violência e morte de travestis publicadas pelo portal do jornal O Estado de S. Paulo, em anos distintos, uma notícia específica chamou a minha atenção. Intitulada “Polícia caça matador de garotas de programa e travestis em São Paulo”, e publicada em 3 de fevereiro de 2016, assinada pelo repórter Alexandre Hisayasu, a matéria cita a morte de quatro mulheres e dois homens ocorridas em menos de dois meses em lugares próximos e localizados em região considerada perigosa; segundo a matéria, cinco das vítimas eram usuárias de drogas e envolvidas com prostituição. O texto relata em cada parágrafo, a morte de uma vítima. A primeira vítima descrita é um homem e os parágrafos seguintes são sobre a morte de quatro mulheres, quase no final do texto a morte da travesti é descrita. 
A linguagem utilizada para se referir à travesti foi correta, mas apenas na construção gramatical. A questão é: quatro mulheres foram citadas no texto, apenas um homem foi mencionado como vítima, mas a matéria informou terem sido dois homens. Em qual estatística a morte da travesti entrou? A morte dela foi considerada como sendo a morte de um homem. O que nos faz pensar em até que ponto a aceitação da travesti é realizada.
De acordo com pesquisa da organização Transgender Europe (TGEU, O Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis. Entre janeiro de 2008 e junho de 2016, ocorreram cerca de 600 mortes, o que faz com que o país lidere o ranking que contabiliza mortes dessa população. Segundo artigos acadêmicos, a morte delas é subnotificada pela imprensa que não consegue criar caminhos para o reconhecimento do outro. Pelo contrário, acaba reafirmando todo o estigma criado sobre a travestilidade. A editoria policial seria o único espaço em que elas aparecem nos jornais, em notícias em que são vítimas ou acusadas de um crime.
O jornalista possui o comprometimento ético, estabelecido pelo Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que diz que é dever do profissional “defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”, assim como não “concordar com a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e de orientação sexual”. Isso é sempre levado em consideração?
Com a análise da matéria acima, pode-se inferir que mesmo se adequando às normas da escrita para a identificação da travesti, o repórter não a reconhece como pertencente do gênero feminino, pois a coloca no número de mortes masculinas. Mas o notável, é que ele a reconhece como usuária de droga e prostituta, ao dizer que “cinco das vítimas eram usuárias de drogas e envolvidas com a prostituição”. A análise do texto não deixa dúvidas quanto a isso, uma vez que a profissão do homem assassinado não foi informada e também, pelas outras vítimas serem mulheres, considerando que a prostituição feminina nas ruas é maior do que a masculina.
Não há a justificativa de que o jornalista não é obrigado a ter conhecimento sobre tudo, uma vez que orientações para a abordagem da imprensa em pautas LGBT existem desde 2010. A iniciativa da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) é reduzir o uso inadequado de conceitos e termos na abordagem LGBT pelos profissionais de comunicação, através do ‘Manual de Comunicação LGBT’.
Ao invés de recriar estereótipos, a narrativa jornalística pode contribuir para modificar o cenário de desigualdade e ceder espaço para vozes que são marginalizadas. Para isso, é preciso que o profissional se abdique de qualquer preconceito, para que entenda a luta de quem batalha todos os dias para ter um espaço na sociedade.
Este exemplo apresentado aqui, mostra o quanto não é suficiente a troca do ‘o’ pelo ‘a’, é preciso um entendimento maior das identidades de gênero. Orientações para a imprensa existem, basta buscá-las. Ainda é preciso recolher as pedras do preconceito para que a passagem do respeito e igualdade seja de livre acesso, com a subversão do olhar social em relação à travesti. O jornalismo tem grande influência na construção de identidades, e deve se atentar para as suas práticas. Uma simples troca de artigos faz muita diferença na vida de uma travesti, mas é preciso ultrapassar a escrita. É preciso que a aceitação seja completa. Na escrita e na mente. Travesti também é gente.
Texto: Aline Nunes/AgênciaJor

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