Por trás dos palcos: histórias de artistas sorocabanos apaixonados pelo teatro
Uma maneira de dar vida a histórias, ideias e conceitos, de forma única e repleta de significados. O teatro é uma arte clássica com uma história milenar que ressoa em todo o mundo. No entanto, quando o investimento nesse aspecto cultural é escasso, é o amor que une os artistas diariamente na busca por criar algo singular. Essa é a realidade de muitos atores, especialmente fora das grandes metrópoles. Para eles, a vontade de estar em cima dos palcos muitas vezes supera qualquer tipo de retorno financeiro, fazendo com que a paixão pela arte prevaleça.
As histórias de Tatiana e Victor são apenas algumas das inúmeras que poderiam ser contadas aqui, porém, ambas representam partes importantes da arte e da luta por permanecer fazendo aquilo que amam, mesmo com inúmeros obstáculos pelo caminho. A atuação não é a única coisa que os une, o laço familiar também está presente em suas vidas, já que são primos. A revista Raízes traz a jornada e momentos marcantes destes artistas, com o propósito de entender quem está por trás das cortinas dos palcos e de seus diferentes personagens.
Conhecendo Tati

A artista e jornalista Tatiana Spuzzillo, de 30 anos, começou sua jornada no mundo do teatro por meio de amigos da época da universidade. Se considerava muito tímida e, apesar de ser apaixonada por peças teatrais, nunca pensou que conseguiria estar em cima dos palcos. Hoje, a atriz já participou de inúmeros espetáculos e vê na arte uma parte crucial de si.
Para quem tinha receio até mesmo de falar em público, Tati — como gosta de ser chamada — chegou em um momento único de sua carreira. Atualmente faz parte do Núcleo de Artes Cênicas (NAC) do SESI Sorocaba, programa que oferece cursos gratuitos de artes cênicas e disponibiliza a infraestrutura necessária para a realização de espetáculos teatrais, e está em cartaz com sua maior peça já apresentada. A artista, que era integrante de um pequeno grupo independente, com dificuldades para encontrar locais para ensaiar, hoje pode desfrutar das condições ideais para fazer o que mais ama, sem grandes preocupações.

Sentada em um sofá no Centro Cultural do SESI, alguns minutos antes do ensaio da sua peça atual, Tatiana conta uma parte de sua história. “Tudo começou por um amigo da faculdade, o Pedro, que já fazia teatro há mais de 15 anos. Ele me chamava para participar das peças, e eu sempre negava. Um dia me deu um “ultimato”, disse que iria dirigir um espetáculo e queria que eu participasse, não aceitaria não como resposta — a jovem relembra o momento com carinho e um sorriso no olhar —, então eu fui, com medo e muito tímida na época, mas fui”.
A jornada de Tati começou em 2019, com o clássico ‘Romeo e Julieta’. “Meu papel era do boticário que oferecia o veneno para Romeo, tinha apenas uma fala, mas isso não me impedia de ficar extremamente nervosa. Durante a primeira apresentação, achei que iria desmaiar”, brinca. “Nessa fala, eu precisava criar uma risada maléfica, coisa que não consegui fazer em nenhum momento durante os quatro meses de ensaio. Ela “surgiu” praticamente cinco minutos antes de entrar no palco”.
A partir daquele momento, a relação de Tati com o teatro se transformou, algo que parecia inalcançável, se tornou uma parte crucial da vida da artista. Ela retrata suas experiências mais marcantes e as experiências ao longo desses cinco anos dedicados à criação e expressão. “O nervosismo fica só até entrarmos no palco, depois é uma delícia”, conta. “O teatro me transformou. Além de me ajudar com a timidez, me fez melhor no aspecto profissional também, me soltei mais e aprendi a me portar melhor. Antes, eu sempre me deixava em segundo plano, priorizando minha família e o trabalho. Hoje, com a ajuda do teatro, aprendi a ser a protagonista da minha própria vida.”
Nem tudo são flores
Apesar de ser uma arte milenar, o teatro, na maioria, segue negligenciado em termos de investimento por empresas e patrocinadores, forçando artistas a encontrar caminhos alternativos para manter seus sonhos vivos. O teatro independente surge, muitas vezes, como refúgio para esses criadores, e foi assim que Tati iniciou sua trajetória. Junto a seus colegas, formou o Coletivo ‘ArteCin’, grupo responsável pelo espetáculo ‘Romeo e Julieta’ e ‘Eu, Empregada Doméstica’, mantendo-se ativo por alguns anos. A jovem relembra os desafios constantes: desde a busca por locais adequados para ensaiar até a criação dos figurinos, tudo era responsabilidade dos próprios atores. Sem remuneração ou participação nos lucros da bilheteria, eles investiam seu próprio dinheiro para que as apresentações pudessem acontecer. “Era muito difícil encontrar locais para as reuniões e ensaios, muitas vezes fazíamos online mesmo, por Google Meet, e quando tínhamos um local para ensaiar era com horários marcados e tempo contado”, relata Tati.
“É muito diferente, tendo vindo do teatro independente e hoje possuir uma estrutura como esta para os ensaios e apresentações. Sei que muita gente não tem essa oportunidade, e como é difícil seguir em frente dependendo 100% dos próprios artistas”, Tatiana explica que nos seus ensaios com o SESI os atores possuem a possibilidade de criar, encenar e aprender enquanto praticam suas falas e números teatrais. “Temos a nossa diretora, Ana, que além de nos guiar nos ensaios também ensina durante o processo. Os atores têm muito mais liberdade para aprender coisas novas e realmente “viajar” criando as cenas, algo que não podíamos nos dar ao luxo de fazer antes, com o teatro independente, já que o tempo que tínhamos era reservado exclusivamente para os ensaios”.
A vida em personagens

Os atores costumam possuir uma grande conexão com os personagens que interpretam. Para dar vida a uma pessoa totalmente diferente de você, em um aspecto muito distinto do qual vive, é preciso se doar por inteiro, criando uma relação muito profunda com quem o artista está dando vida nos palcos.
Tatiana conta com carinho a vivência de suas “personas” e os diferentes processos de preparação para cada uma. “A minha segunda personagem no teatro foi Cristina em ‘Eu, Empregada Doméstica’, uma peça autoral do Coletivo. Ela foi baseada em uma pessoa real muito importante para minha vida. Cristina teve uma história de vida bem intensa, e conseguir levar isso para os palcos foi extremamente gratificante. Nós mesmos escrevemos e desenvolvemos tudo, significou muito para mim”.

Tati também interpretou Gaia, em uma peça de mesmo nome, e seu papel atual é Clara, na produção ‘Eis a questão!’, baseada em textos de Shakespeare. “A Clara é minha maior personagem até hoje, com ela tenho mais cenas e falas. A peça é parte autoral, apesar de utilizarmos textos clássicos, escrevemos algumas cenas e criamos os personagens do zero, o que foi uma delícia de fazer”.
A história de Victor
Em um dos inúmeros bairros da grande São Paulo vive Victor Mota, de 32 anos, o sorocabano que iniciou sua carreira no teatro ainda na adolescência, em oficinas realizadas pela prefeitura da cidade. Victor se mudou para a “cidade grande” em busca de seguir com sua paixão pelas artes, estudou teatro na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (USP) e hoje diz com orgulho que vive 100% pelo que ama. “Não vou romantizar, já que não foi — e não é — uma trajetória fácil, mas acredito que desde 2012, quando formei meu primeiro grupo independente em Sorocaba, basicamente vivo de teatro”, diz Victor.

O sorocabano passou por uma longa trajetória até chegar onde está, desde 2008, quando passou por sua primeira oficina. Victor já se relacionou com diferentes frentes do teatro e da arte em geral. “Tudo começou em uma oficina cultural chamada Grande Otelo. Por lá, os artistas participavam de aulas com pessoas do meio teatral, faziam os ensaios e apresentações ao final do curso. Comecei frequentando uma delas, e rapidamente me encantei pelo universo, passava muito tempo ali, e fui emendando uma oficina na outra, fiz canto e dança também”, Victor passou grande parte da sua adolescência inserido na cena teatral sorocabana, e quando os cursos chegaram ao fim, ele e colegas de turma decidiram criar seu próprio grupo independente.
O grupo de Victor contava com cerca de 13 alunos das antigas oficinas, todos apaixonados por aquela arte que lhes foi apresentada. “Eu nem me lembro se tínhamos um nome, não foi nada muito pensado, nossa vontade era apenas de continuar atuando, todos estavam muito animados depois da apresentação da peça de encerramento, então decidimos continuar. Foi com este grupo que vi o outro lado do teatro, como éramos independentes, precisávamos conseguir recursos, desenvolver figurinos, aprender sobre som e iluminação e por aí vai. Foi uma fase de muito aprendizado”, os ensaios e apresentações eram feitos no mesmo local onde aconteciam as oficinas, localizado no Centro de Sorocaba. Victor permaneceu no grupo por dois anos, que foi se dissipando após esse tempo.
Depois do encerramento do grupo, Victor, que já via a arte como parte crucial de sua vida, decidiu seguir no ramo. Na época, já tinha contato com pessoas da área e estava mais familiarizado com o teatro. Ainda era jovem, porém muito mais experiente e certo de que o teatro não era apenas um passatempo, mas sim algo para a vida.
O grupo Trupé
Em sua entrevista à revista Raízes, Victor enfatizou diversas vezes a importância que um certo grupo teve na sua formação como ator. A Trupé surgiu em 2012 e permaneceu atuando até 2019. Inicialmente chamada de Trupe Koskovski, era formada, em parte, por artistas da Universidade de Sorocaba (Uniso), graduando da primeira turma de teatro da universidade.
O grupo fazia, especialmente, apresentações de teatro de rua. Um formato que pode ser considerado mais “alternativo” de atuação, onde os atores utilizam as ruas, casas e prédios ao seu redor para compor a história que está sendo contada na peça. “Nós tínhamos uma sede próxima à rodoviária de Sorocaba, e sempre víamos muita movimentação do local, então pensamos: quantas pessoas passam por lá todos os dias, mas não conhecem a história? Isso chamou muito nossa atenção”, Victor relata que uma das artistas do grupo sugeriu um projeto que contasse a história dos pontos históricos da cidade.
A partir desta ideia surgiu uma trilogia de apresentações estreladas pelo grupo, chamada de ‘Trilogia do Centro da Cidade’. “A gente enlouqueceu com a ideia, todos ficaram muito empolgados, nossa primeira peça durava mais de três horas”, Victor enfatiza como o cenário era uma parte crucial do espetáculo, “começamos na rodoviária e depois íamos passando pelas ruas próximas dali, o espaço estava totalmente ligado à dramaturgia e as cenas”.

Victor conta que o grupo passava pela cidade narrando uma história que cativava as pessoas ao redor, quem quer que estivesse nas ruas se tornava um público espontâneo, às vezes apenas daquela cena em específico ou por toda a trajetória da peça. “As apresentações muitas vezes eram interativas, uma das personagens sempre acompanhava o público durante as cenas e conversava com eles”, explica o ator.
A Trupé durou cerca de 8 anos. Além das inúmeras apresentações de teatro de rua do grupo, eles foram responsáveis por escrever editais culturais para a cidade, os vendiam para empresas privadas e também realizavam peças infantis em escolas. “Nós nos dedicamos demais ao grupo, foram anos em que vivíamos daquilo intensamente. E eu acho que esse envolvimento com a Trupé, de todos os anos de trabalho, considero como um auge, um doce, porque é a história de um grupo de teatro do interior, que viveu independente e conseguiu se consolidar por muito tempo”, completa Victor.
Vivendo da arte

Victor consegue dizer que, atualmente, realizou um grande sonho e vive totalmente da sua arte. Além do teatro, o jovem se encontrou em uma segunda paixão: a música. Ele se formou pela Uniso, e já realizou projetos envolvendo ambos os mundos. “Fiz uma peça chamada ‘Panfleto Maria’, onde em uma das cenas eu tocava piano no palco. Isso foi muito simbólico para mim, essa junção das duas artes”, reflete o ator.
Após a mudança para São Paulo, trabalhou dentro e fora dos palcos e, recentemente, teve seu primeiro contato com o audiovisual, fazendo uma pequena participação na série ‘José e Durval’ da plataforma de streaming Globoplay. O ator conta como a experiência o fez conhecer um novo lado da arte.
Além de sua participação na série, Victor estrelou em outras peças teatrais, incluindo um projeto de teatro de rua, intitulado ‘Filha do Encontro das Águas’, trabalho feito em Manaus. O sorocabano também segue com seus trabalhos musicais, e participa de um grupo chamado ‘Odiderê’, voltado para a música africana, com criações autorais.
Apesar de conseguir seu sustento da arte, Victor ainda relata que encontra dificuldades no dia a dia e que, por conta do estilo de vida, as coisas acabam sendo mais incertas. “Muitas vezes os artistas se colocam em uma posição de vulnerabilidade, porque a vida é difícil, as coisas não acontecem sempre. Por isso, além de participar de projetos como convidado, decidi investir nos meus próprios, como o grupo musical. Acredito que seja um jeito de olhar pelo meu futuro”.
Victor completa: “Quando enxergamos a arte e projetos artísticos como algo profissional e não um passatempo, isso nos muda de verdade. Afinal, por que não podemos ver isso como um trabalho tal qual os demais? Pode não ser um cargo em regime CLT, onde você precisa trabalhar todos os dias oito horas por dia, por exemplo, mas ainda sim é um trabalho”.

Mas afinal, por que o teatro?
Apesar de suas diferentes experiências e rotinas, Victor e Tatiana compartilham do mesmo pensamento quando a pergunta apresentada foi: mas afinal, por que o teatro?
Tati irá dizer: “Parece que “pulsa” mais, quando é ao vivo como o teatro, ficamos mais emocionados, sentimos mais. Quando vemos tudo aquilo acontecendo bem na nossa frente, se torna algo até mesmo mais carnal. Uma sensação que só o teatro proporciona”. Victor, mesmo que com outras palavras, compartilha do mesmo sentimento que a prima. “Tenho essa sensação dentro de mim sempre que assisto a uma peça, ver a coisa acontecendo bem na minha frente, com pessoas que estão se dedicando para contar uma história a você, de uma forma tão humana e sensível. Isso me encanta de um jeito inexplicável”.
Tais falas são apenas um resumo da importância da arte, não só para eles, mas sim para todos os artistas que se encontraram seja em cima dos palcos, em frente às câmeras, com um microfone em mãos ou dedilhando algum instrumento musical. Todos possuem algo em comum: a paixão pela arte, que transforma quem estiver ao seu redor em seu ‘eu’ mais autêntico e verdadeiro.

Reportagem produzida originalmente para o Projeto Experimental em Jornalismo, na modalidade revista digital, revista raízes. O projeto foi desenvolvido pelas alunas Bárbara Fernanda de Campos Bruno, Camila Alves da Silva, Laura da Silva Mazo Hurtado e Livian Oliveira Regaçoni sob orientação da professora Bianca Didoni.