Relicários, Casas e Memórias: uma entrevista com Laura Mello de Mattos
Por Gustavo Guebert (Agência Focas – Jornalismo Uniso)
Com Laura Mello de Mattos, as fronteiras não estão definidas. No laboratório de Moda da Uniso, curso do qual é coordenadora, ela chega estampada da cabeça aos pés: blusa listrada, calça xadrez e sandálias com estampa de vaca. Porém, o toque pessoal de Laura, torna a composição harmônica, cheia de personalidade e conforto. Ela é uma pessoa acolhedora, e isso se reflete no seu trabalho, profundamente ligado à afetividade e à memória. E é justamente em busca de memórias e afetos que Laura, tanto a artista plástica quanto a acadêmica, vai até Portugal para uma residência, uma imersão na cultura portuguesa. Seus destinos incluirão Lisboa e Caldas da Rainha, famosa pelos bordados em linho branco, simétricos e em fios dourados. A viagem, que durará dez dias, promete reverberar não só no trabalho artístico de Laura, mas também no curso de Moda da Uniso.
Focas: Como surgiu a ideia dessa residência em Portugal?
Laura Mello de Mattos: Eu já mantenho contato com essa pessoa da residência há mais de um ano. Eu comecei a perceber que o meu trabalho de artista estava se comunicando com o meu trabalho acadêmico, por meio da questão dos têxteis, que têm uma forte presença dentro da minha consolidação acadêmica, que está ligada a pesquisas sobre tecnologia têxtil e sustentabilidade. Mas, dentro da minha pesquisa de artista, veio um interesse nos têxteis da casa e em pensar na casa como um grande relicário, onde guardamos emoções, memórias, afetos – e também desafetos – e que tem a função de organizar as nossas rotinas. Então, comecei a buscar têxteis do doméstico e criar uma relação com a moda, como numa série minha que se chama “Visto-me de Pintura”, em que pego esses têxteis e coloco como se fossem trajes, e trago também objetos da casa, como talheres, e também características de espelhamento. Além disso, a residência surgiu como uma oportunidade de fazer um encontro de culturas, inclusive com a minha anterioridade, como descendente de portugueses que imigraram para o Rio Grande do Sul, que tem uma comunidade portuguesa dos Açores, que preserva a cultura dos bordados, dos fazeres, das manualidades, algo que é muito forte para mim.
Focas: Então existe uma questão de memória afetiva, de resgate familiar nessa residência?
Laura Mello de Mattos: Sim, numa busca por resgatar elementos dessa casa, desse relicário e dessas memórias que, de alguma forma, me representam e que podem aparecer na minha produção artística.
Focas: Você tem um olhar sensível para as coisas triviais, como na série sobre os banheiros, e agora na série sobre as mesas com as toalhas e os talheres. Como podemos aguçar nosso olhar para o banal, para o trivial? E como isso se comunica com a sua residência em Portugal?
Laura Mello de Mattos: Tem uma dupla de artistas, Jeanne-Claude e Christo, que encapou edificações importantes em diferentes locais do mundo para, justamente, destacá-las. No momento em que você cobre as coisas pelas quais você passa todos os dias, você nota que elas existem. E eu tento fazer isso, dar destaque a objetos ordinários, de uso contínuo, que têm uma função organizadora nas nossas vidas, que nos dão conforto. Eu os destaco para que eles sejam enaltecidos, porque nós os banalizamos. Muitos desses objetos estão ligados a fazeres femininos, e eu tenho a intenção de pacificá-los, de trazê-los não como um fardo feminino, mas de colocá-los num lugar de conforto e memória. E, quando eu vou para Portugal, a minha intenção é buscar esses objetos ordinários daquele local, daquelas casas, ver o que pacifica e organiza as tradições daquele lugar.
Focas: Você espera encontrar mais diferenças ou mais semelhanças em relação ao Brasil?
Laura Mello de Mattos: Eu espero encontrar memórias. Memórias de coisas que as minhas avós e tias me passavam e mostravam, que estavam muito fortes na cultura delas, e que eu fui deixando para trás. Então, eu espero reencontrá-las nesses lugares. Reencontrar essas mulheres que me constituíram. Nas mesas, que são um grande lugar de encontro, nos bordados, nos objetos que pertencem às afetividades das pessoas.
Focas: E onde exatamente se dará a residência?
Laura Mello de Mattos: Em Lisboa e em Caldas da Rainha, que tem um bordado tradicional e histórico. Minha intenção é trazer o aprendizado dessa pesquisa para a semana de moda da Uniso. Quero descobrir como inserir esse conhecimento nas nossas produções.
Focas: Qual é o papel do detalhe na arte, na moda e no seu trabalho?
Laura Mello de Mattos: Eu penso que o detalhe traz um aprimoramento de técnica. Ele serve para que o artista torne visível o seu mundo de ficção invisível. A preocupação dos artistas que trazem uma ênfase no detalhe está em tornar a fala cada vez menor, porque a obra fala por si só, sem que se precise explicá-la, pois tudo está presente nos detalhes dessa imagem. Essa é a minha maior intenção quando eu me preocupo com o detalhe no meu trabalho.
Focas: O que tem de único nesse bordado específico que você vai estudar?
Laura Mello de Mattos: O que nós sabemos sobre as culturas é que elas se misturaram muito, e que hoje nós tentamos separá-las, dizer “essa é minha”, “essa é sua”. Eu não penso dessa forma. O que eu quero encontrar lá são várias culturas presentes nos fazeres que vou pesquisar. Por exemplo, Portugal teve um período de invasão árabe na sua história, e isso está lá na cultura do lugar. É bom saber que existem essas comunicações entre as culturas, porque assim deixamos de ser preciosistas e excludentes. Minha ideia, novamente, é trazer a pacificação, a ideia de que somos construídos de muitas peças. Eu tenho um pedaço meu lá em Portugal, mas existem outros pedaços de lá que não são meus, e eu quero me encontrar com eles também. Às vezes eu me surpreendo com essa mentalidade separatista que estamos vivendo no contemporâneo. O mundo não quer ser globalista? Como podemos ser globalistas se estamos pensando em separar? As pessoas precisam estar abertas para receber o que o mundo está pronto hoje para lhes entregar.
Focas: Você acha que essa pesquisa é mais da Laura acadêmica ou mais da Laura artista?
Laura Mello de Mattos: É mais da Laura artista. Mas a Laura artista nunca se separa da Laura acadêmica, porque ela sempre pensa numa finalidade para o que ela pesquisa.
Focas: O seu trabalho lida com questões do feminino e do olhar masculino sobre o feminino. Você espera encontrar diferenças nas relações de gênero no Brasil e em Portugal?
Laura Mello de Mattos: Eu não trago muito isso no meu trabalho. Eu penso mais numa consolidação de um feminino que se coloca, generosamente, como acolhedor. Então, o meu trabalho é um trabalho delicado, e as pessoas rapidamente percebem essa delicadeza. E a delicadeza está nas relações humanas, de ser uma pessoa muito mais acolhedora do que excludente. Então, o que eu penso, sem levantar nenhuma bandeira, é simplesmente em transformar os sentimentos, as mentalidades. A arte não pode ficar num selo só, se não, ela deixa de ser arte e se torna propaganda.
Focas: Se não, ela fica panfletária e cafona, não é?
Laura Mello de Mattos: Isso! Fica limitante.
Focas: A arte tem grande influência na moda, como no vestido Mondrian de Yves Saint Laurent. Mas e o contrário? A moda também influencia a arte?
Laura Mello de Mattos: Sim. Há artistas contemporâneos trabalhando com isso. Tem uma artista brasileira, Nazareth Pacheco, que usa o vestuário como forma de comunicação. Ela nasceu com lábio leporino, teve que fazer muitas cirurgias ao longo da vida, então a questão da beleza e da estética é importante para ela. Ela construiu vestidos de giletes, de agulhas, e usa o vestuário como elemento de comunicação de uma impossibilidade para ela. Outra brasileira, Janaina Tschäpe, que está sediada nos Estados Unidos, usa na série “Lacrima Corpus” um vestuário feito de bexigas para representar as deformações corpóreas. Hélio Oiticica, Flávio de Carvalho, Salvador Dalí, muitos artistas usaram vestuário e tecidos na sua arte. A arte têxtil hoje está em alta. No SP Arte vemos muitos trabalhos usando a tecelagem como fundamento técnico para construir uma linguagem. Para a arte, não existem fronteiras.
Focas: Vivemos em um mundo muito acelerado. Você acredita que a arte deve acompanhar essa aceleração ou que a função dela deve ser a de “desacelerar”?
Laura Mello de Mattos: A arte é uma antena que capta as ondas do que está acontecendo no mundo. O artista vai traduzir o espírito do seu tempo, o zeitgeist. Então, o papel da arte é justamente não ter papel, mas apenas manifestar o que os artistas captam de seu tempo. No meu trabalho, eu pretendo brindar à casa como um lugar de tranquilidade, de reorganização. E eu estou vendo outros artistas também trazerem esses elementos do ordinário nas suas obras.
Focas: Até porque as pessoas ficam bem menos em casa hoje em dia, não é? Então a casa, mais do que nunca, fica necessária.
Laura Mello de Mattos: E a casa é um lugar de reorganização, um local onde você pode se sentir acolhido ou não. Eu coloco a casa como um relicário justamente por isso. O que é um relicário? É um objeto de joalheria onde você guarda memória, afeto ou desafeto. A casa tem esse papel, muito mais de afeto do que de desafeto. E eu acho que o artista tenta lançar suas ideias para o mundo contemporâneo para ver se contamina as pessoas, como um comportamento de moda, de repetição. No meu trabalho, entendo que a casa é um lugar onde você pode ter paz, onde há os objetos que te organizam, onde você pode ter prazer com as pequenas coisas que você tem que fazer todos os dias, porque essas coisas te organizam como ser humano.
Focas: A ideia do relicário tem a ver com escolher certas memórias em detrimento de outras?
Laura Mello de Mattos: Sim, é um processo de fazer as coletas que te interessam, de trazer para dentro o que fazer sentido para você. E não é igual para todo mundo. Para outras pessoas, a casa pode ter outro significado.
Focas: Qual vai ser a duração da viagem e quais serão os lugares que você visitará?
Laura Mello de Mattos: Ficarei dez dias, de 24 de abril a 4 de maio. Terei visitas técnicas, visitarei o ateliê de uma grande artista portuguesa, Joana Vasconcelos. Lá, teremos uma reunião expositiva dos trabalhos que forem sendo feitos ao longo da residência. Também iremos a uma fábrica de porcelanas e de bordados em Caldas da Rainha, e também ao museu da cidade. Eu também estou preparando alguns trabalhos meus para levar e finalizar lá conforme os elementos que encontrarei. Minha ideia é levar as coisas mais ou menos definidas para chegar e ser contaminada pelo que tiver lá. Teremos outras visitas a museus, onde veremos exposições de artistas como Paula Rêgo e Adriana Varejão. Também vou visitar muitas feiras de antiguidades, porque é nelas que estão as memórias que me interessam e é nelas que vou fazer os encontros entre passado e presente.
Focas: Qual você acha que é o papel da memória na arte?
Laura Mello de Mattos: Nossa, esse é um assunto que está sendo muito trabalhado ultimamente, principalmente porque as pessoas têm uma necessidade de voltar ao passado e entender o que ele pode produzir de efeito no presente. O futuro é incerto, ninguém sabe; mas você precisa da memória para consolidar relações no presente. Esse é o papel da memória.





