A arte se encontra no interior: conheça as história de Valtinho da 2 e Discórdia
Artistas fazem parte da identidade visual da cidade de Sorocaba
Por Camila Alves (Agência Focas- Jornalismo Uniso)
Andar pelas ruas de Sorocaba é ter a certeza de que irá se deparar com manifestações artísticas pelos muros, viadutos, placas e, até mesmo, calçadas. São pinturas, desenhos, cores, luzes, sombras e contornos espalhados pelos cantos que trazem um pouco de vida a conservadora cidade.

O concreto é como uma tela em branco para o técnico de enfermagem Valter Luiz, conhecido popularmente como Valtinho da 2, figura icônica que se tornou, ao longo dos anos, símbolo sorocabano. Nascido em Diadema, e criado na capital paulista, Valtinho iniciou seus passos no grafite no Jardim Miriam, bairro em que morava . Para ele, tudo começou como uma brincadeira. No auge dos anos 80 o grafite estava em efervescência no Brasil, principalmente na forma de Stencil – técnica de arte urbana que utiliza um molde vazado ou máscara para aplicar desenhos ou ilustrações em superfícies – e, aos poucos, chegava aos grandes centros urbanos, como a grande São Paulo.
Em Outubro de 1987, após ganhar um tubo de spray dos colegas, Valtinho realizou, pela primeira vez, o gesto de escrever, letra após letra, o nome que se tornaria conhecido em toda a região de Sorocaba: Valtinho da 2. A assinatura faz referência a rua em que Valter morava, a “Rua 2 do bairro”. “ De lá para cá, não parei mais, se tornou como um vício.” completa o artista.

Ao longo de quase 40 anos espalhando seu nome pelos lugares, o técnico de enfermagem já perdeu as contas de quantas assinaturas são. Quase que “onipresente” na região, ele reforça que seu nome não está apenas por aqui. “ Tem assinaturas minhas no litoral e até em outros estados, não sei quantas têm, e isso não me importa, na verdade; mas são muitas.” Descontente com o preconceito contra as pichações e após uma abordagem policial que o marcou bastante, em 2013, Valtinho decidiu dedicar-se mais ao grafite, o estilo de Street Art que, geralmente, vem acompanhado de alguma crítica social. “Me interessei em grafitar, pela primeira vez, quando vi um homem grafitando na Av. Rebouças, em São Paulo. Aquilo me encantou porque, até então, eu só pichava o meu nome”. Embora ainda não seja considerado por muitos como arte, o grafite é mais socialmente aceito. “Depois de ver aquele homem grafitando com Stencil, quis muito grafitar, mas no começo foi difícil, não tinha ninguém para me ensinar, fui aprendendo sozinho.” completa.
Atualmente, vivendo em Sorocaba desde 2003, o artista foca em grafitar personagens e super herois muito conhecidos pelo público. “Gosto de retratar nos meus grafites personagens de desenhos dos anos 80 e 90, lembram a minha infância.” Ele reforça que segue assinando apenas seu nome, mas agora, com menos frequência.

A arte se encontra no interior
O também morador da cidade, Pedro Caboatan, de 33 anos, é outra figura conhecida sorocabana, mas, diferente de Valtinho, não pela assinatura de seu nome. O artista, que não gosta de mostrar seu rosto, é o famoso “ Discórdia” que ilustra diversos grafites e artes por Sorocaba. Seus trabalhos contestam o modo de viver dos centros urbanos, nos convidando a refletir sobre o próprio conceito de normalidade.O nome Discórdia veio da letra de uma música da banda de alguns colegas e sua marca registrada, um rosto gritando, tem um significado mais complexo. Segundo o multi-artista, a imagem incorpora o nome. A pessoa gritando, para ele, representa indivíduos tidos como loucos na sociedade, excluídos, mas que existem e merecem espaço, fazendo uma alusão aos próprios artistas de rua. “ Assim, todo mundo que faz arte na rua é, tipo, considerado como louco, de alguma forma. Por isso, pra mim, o grito faz total sentido.” finaliza.

Grito de discórdia – Foto por: Camila Alves
Pela discrição desde que começou a espalhar arte, assim como Valter Luiz, poucas pessoas associam sua imagem física aos grafites que veem no dia a dia. “Tive meu primeiro contato com a arte dentro de casa, minha avó costurava e pintava, então, todo mundo da família já estava meio que inserido nesse meio.”
Em 1998, ainda criança, Pedro, o Discórdia, ao andar de skate, começou a observar e se inserir no meio da arte de rua. “Nessa época, em Sorocaba, as pichações estavam muito presentes. “Pichação e grafite são coisas diferentes mas, a partir do momento que tá na rua, é arte, pra mim, não há restrições.” Desde então, o artista passou a se interessar cada vez mais por esse tipo de manifestação, buscando referências nacionais e internacionais, principalmente, por meio de revistas.
Além do grafite
“Sempre morei muito longe do centro, tinham poucos meios e disponibilidade para me encontrar com os outros grafiteiros; além disso, acontecia muita briga na rua, então comecei a estudar em casa outras técnicas de arte, como as colagens e os lambe-lambes.” O lambe-lambe começou a aparecer no século XIX com o surgimento da impressão em massa, o que possibilitou a criação de uma nova maneira de propaganda: o cartaz. Hoje, pessoas de diversas áreas utilizam essa técnica para transmitir mensagens, provocar reflexões e embelezar o ambiente urbano, como é o caso de Pedro. Ele revela que, como a produção em gráficas era muito cara, aprendeu a fazer seus “lambes” sozinho. “Consigo produzir bastante lambe e stencil sozinho, e aí, tiro um dia para colar pela cidade”. Todo o processo de produção da cola é feito por ele também.
O artista diz que nunca se limitou, espalhando suas artes desde 2005, busca referências na dinâmica da cidade para criar as composições. Tendo o costume de fazer ações sociais na zona periférica, ensinando, por exemplo, grafite para crianças, Discórdia tem o hábito de fotografar tudo e depois usar as imagens como inspiração nas artes. Um de seus grafites espalhados pela cidade, “O menino no cavalo”, surgiu após um desses eventos. Pedro conta que, após fotografar um menino cavalgando na periferia, refletiu sobre aquilo, e transformou em Stencil. “ A brisa do moleque e do cavalinho é essa, refleti na questão da cidade de Sorocaba estar sendo destruída para crescer e para construir mais prédio, tá ligado? E aí, o moleque com o cavalo traz essa reflexão: por mais que a gente esteja nesse ritmo, querendo “se transformar” em São Paulo, aqui ainda é interior. Era isso que eu queria mostrar, ainda tem gente que anda a cavalo aqui, somos uma metrópole rural.” completa.

Apesar de terem trabalhos espalhados por toda a cidade e de gerarem muita curiosidade nos moradores, os artistas não se consideram pessoas conhecidas ou “símbolos da cidade”. “Para mim, não é uma realidade, não me vejo dessa forma. As pessoas conhecem meus trampos, mas não sabem quem eu sou.” Para Valtinho, a realidade é a mesma. O técnico de enfermagem não se considera famoso e, segundo ele, poucas pessoas sabem quem ele realmente é.
“Já aconteceu de pessoas que trabalhavam comigo falarem: ‘Mas quem é esse cara que tem o nome em todo lugar?’ Quando falo que sou eu, ninguém acredita.”
Ele também lembra o ar de mistério que envolvia suas pichações. “Muita gente achava que onde estava escrito ‘Valtinho da 2’ era um ponto de drogas, mas nunca teve isso. Escolhia os lugares ao acaso”, diz.
Viver de arte e incentivos
As histórias de Pedro e Valtinho se cruzaram na Feira do Beco do Inferno, em Sorocaba. Os artistas expõem seus trabalhos com certa frequência no evento, que acontece a cada dois meses na cidade. “Eu acho que é o único evento cultural de Sorocaba que realmente dá ao artista a liberdade de expor o que ele quer. Tem desde a senhora que vende crochê, até um moleque expondo suas artes.”
Para os dois, a feira proporciona uma oportunidade de ganhar dinheiro com o que produzem. Atualmente, Pedro coloca à venda grande parte das telas que faz em seu ateliê com as técnicas de colagem e stencil, tornou-se sua fonte de renda. Para Valtinho, a arte não é fonte primária de renda e o artista considera mais um hobby. Apesar do amor pela street art , Valter diz que nunca pensou em fazer carreira com o grafite, por não haver “valorização da arte”. “Gasto, em média, R$150 por desenho que faço, e não cobro nada. Faço por paixão”, diz.

Além da Feira do Beco, as palestras em escolas e instituições de ensino, lazer e cultura, são formas que os artistas encontram para espalharem a arte e seus conhecimentos. “Nos últimos anos fui em, mais ou menos, seis colégios dar palestras. É muito legal ver o pessoal se divertindo com os sprays.” comenta Valtinho, que finaliza dizendo que, há não muito tempo, foi convidado para palestrar em uma universidade na cidade de Sorocaba.
Na forma de Lei de incentivo à cultura, promovida pela prefeitura de Sorocaba, oportunidades de expor projetos chegaram ao artista Discórdia. Pedro diz que essas ações são importantes, mas ainda faltam mais estímulos do poder público. “ Já participei de uma oficina da prefeitura, chamava “Projeto aerosol”. A ideia era legal, mas não senti que podia me expressar da forma que queria. As aulas eram de arte, mas não de grafite, tudo muito engessado”.
Para Caboatan, o pouco investimento se deve, também, ao conservadorismo extremo na cidade e ao preconceito com a arte de rua. Além disso, outras intolerâncias são enfrentadas pelos artistas. Para os dois, as abordagens policiais são desanimadoras, e causam medo. “Em uma abordagem, há alguns anos, os policiais levaram todos os meus objetos de trabalho e uma coleção de lambe-lambes que eu guardava há anos. Tinham vários que eram de outros países, tinha um valor sentimental enorme, foi bem ruim”, relata Pedro. Para Valtinho, as abordagens nunca foram violentas, mas causam medo. “Eu tenho família, filhos, não quero “rodar” por bobeira, eles precisam de mim. Por isso não fico me arriscando e não picho em locais privados.”
Seja nos muros, em prédios abandonados ou nos viadutos e pontes da cidade, essas duas figuras imponentes se fazem presentes diariamente no cotidiano do cidadão sorocabano. Em comum, além do amor pelo grafite, pela pichação e pela arte urbana, histórias que vão além das assinaturas e desenhos.