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Sorocaba marca posição no mapa da cerveja artesanal


Muita gente tem buscado nas cervejarias artesanais independentes uma alternativa para as grandes marcas de cervejas industrializadas. Os dados são da Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva): entre 2017 e 2018, houve um aumento de 23% no número de cervejarias artesanais independentes, que passaram de 679 para nada menos do que 835 empresas. Os dados são nacionais, mas, na região de Sorocaba, as coisas também parecem estar esquentando. “Nesse ano de 2019, Sorocaba obteve o reconhecimento do Estado de São Paulo como parte da Rota Cervejeira, que também existe em outras regiões, como na própria capital, em Campinas e em Ribeirão Preto”, destaca o mestre cervejeiro da Cervejaria Synergy, de Sorocaba, Eduardo Sampaio. Mas o que é que está levando o consumidor a fazer essa escolha, por um produto que, na maioria das vezes, é mais caro do que as alternativas, e qual o papel de Sorocaba nessa história toda?
Não são perguntas fáceis de se responder e, segundo o professor mestre Ricardo Nery, engenheiro agrônomo e docente em vários cursos de graduação da Universidade de Sorocaba (Uniso), incluindo Engenharia de Alimentos e Gastronomia, para entender de fato a questão da preferência, é preciso começar compreendendo os ingredientes que compõem uma cerveja. Segundo o professor, são quatro os componentes principais, sendo que, em primeiro lugar, vem a água, que pode representar de 85% a 95% de uma cerveja. “Muita gente dá pouca importância, mas a água tem várias características físico-químicas que influenciam na qualidade final de uma cerveja, como os teores de carbonato, a alcalinidade e a acidez”, afirma Nery.

Prof. Me Ricardo Nery (Universidade de Sorocaba – Uniso)

Outro ingrediente é o malte. Ele é um grão, geralmente de cevada, que é germinado e tostado. Ricardo explica que a germinação serve para ajudar o malte a transformar o amido em açúcares que possam ser fermentados. Em relação ao ato de torrar o malte, o docente, que também é produtor de cervejas, destaca que existem diferentes tipos de torras. “Isso dará diferentes aromas para a cerveja. Temos desde uma torra leve, que irá dar um aroma de pão, até uma torra mais pesada, que pode chegar ao chocolate ou ao café. Então, utilizando maltes de torras diferentes, a gente consegue dar características diferentes para a cerveja”, ele explica.

Além disso, na produção de cerveja, é utilizada a flor da planta feminina do lúpulo. Ela é a responsável pelo amargor da cerveja, devido aos ácidos presentes em sua composição. Mas essa utilização do lúpulo para dar o amargor ocorreu de maneira acidental. Nery comenta que antigamente, até os anos de 1200 a 1300, era utilizada uma mistura de ervas aromáticas como alecrim e orégano, chamada de Gruit, para dar sabor à cerveja. O lúpulo entrou no início apenas como um agente conservador. Ao perceber a diferença que o ingrediente começou a causar na experiência como um todo, os cervejeiros extinguiram o uso da Gruit. “Existem diversos tipos de lúpulo. Cada um deles tem dentro da sua flor uma glândula chamada lupulina. Ela tem características diferentes de um lúpulo para outro, trazendo aromas mais terrosos, florais, herbais ou cítricos”, complementa Nery, citando que o lúpulo também é utilizado devido à sua função bacteriostática, ou seja, combatendo a proliferação de microrganismos indesejáveis e preservando a cerveja.
O quarto principal componente da cerveja é a levedura, que, segundo Nery, pode ser dividida em três tipos. “As leveduras de lager são leveduras de baixa temperatura/fermentação, geralmente cultivadas a 12 graus. Elas são as responsáveis por uma cerveja mais simples, plana, como as do tipo American Lager. As do tipo ale trazem características frutais, como, por exemplo, frutas secas, amarelas, banana etc. Já as leveduras selvagens, trazem um aroma parecido com o de vinhos.”

Para Eduardo Sampaio, sem um bom plano de negócio e profissionais capacitados, cervejarias não sobreviverão à “seleção natural” do mercado.
“60% da cerveja que colocamos no copo corresponde a impostos”
No ramo das cervejarias, a sorocabana Synergy, criada em 2015, era até 2017 o que se chama de cervejaria “cigana”, pois não possuía uma fábrica própria. Há dois anos, tornou-se independente, deixando de terceirizar suas produções em outras cervejarias. Segundo seu proprietário, o engenheiro de alimentos Eduardo Sampaio, a cerveja Synergy alcança hoje 14 estados brasileiros, com uma produção média de 10.000 litros por mês. Sampaio, que é juiz de concursos de cervejas e consultor de cervejarias, comenta que esse é um mercado para poucos, e que fazer a cerveja é a parte mais fácil do negócio. “Mesmo aquelas cervejarias que souberam traçar um plano de negócios com produtos consistentes e com pessoas tecnicamente capacitadas poderão passar por tempos ruins. Mas são justamente essas cervejarias que sobreviverão à ‘seleção natural’ do mercado. Para as que não estão preparadas, sinto dizer que o risco de fechamento das portas em até dois anos é iminente”, ele diz.
O preço desse tipo de bebida costuma ser mais caro do que as cervejas industrializadas vendidas em larga escala no mercado. Sampaio aponta os impostos como sendo o grande vilão e o fator que mais impacta os pequenos produtores. “Cerca de 60% da cerveja que colocamos no copo corresponde a impostos”, diz Sampaio, citando também fatores como o perfil do público que consome esse tipo de cerveja, a própria qualidade (que demanda ingredientes mais caros) e as variações das moedas internacionais. Nery diz que o euro interfere diretamente no preço do lúpulo e o dólar, no do malte. “O lúpulo é cotado em euro, em uma bolsa na Alemanha que o trabalha como uma commodity. Então, as variações nas cotações e na moeda fazem com que o preço varie ao chegar no Brasil. Já o malte é muitas vezes importado da Argentina e, devido a isso, o preço é cobrado em dólar”, ele explica.
Ainda assim, o consumidor está disposto a pagar mais por produtos diferenciados. Questionado sobre o preço das cervejas artesanais encontradas na região de Sorocaba, o professor José de Souza, que é consumidor desde 2014, afirma que ainda o considera dentro dos padrões. “Eu consumo a maioria dos estilos, mas os meus preferidos são a IPA e a Stout. O que me atrai é a variedade de sabores, e o preço que eu tenho encontrado está legal”, comenta Souza. Já para a bibliotecária Danielly Nunes, existe um limite de preço: “Apesar de gostar de consumir somente as de trigo, eu vejo o preço dos outros estilos e nem sempre acredito que esteja adequado. Eu já consumo há três anos já, mas, mesmo sabendo da qualidade, prefiro avaliar o preço”.

José Souza (31) e Danielly Nunes (30)


Nery diz que é possível que os cervejeiros nacionais produzam as próprias matérias-primas para reduzir os custos, já que o Brasil possui grandes empresas produtoras de malte, por exemplo. Mas o problema maior é o lúpulo, devido à temperatura do país. “Não existe lúpulo brasileiro para produção em grande escala. Tem algumas associações que estão começando a fomentar a produção de lúpulo no Brasil. Só que o Brasil tem um problema climático. O lúpulo é uma planta de clima frio, que precisa de 16 horas de luz para florescer. A indústria cervejeira que utiliza o lúpulo em larga escala tem que importar, não tem jeito”, ele explica.
Caminho sem volta?
Tem muita gente que diz que, após conhecer o mundo das cervejas artesanais, passa-se a ver as industrializadas com outros olhos. “Vai depender do gosto de cada um. Geralmente brinco que é um caminho sem volta. No entanto, acredito que a decisão de consumo de cada um tem que ser respeitada. Por experiência própria, sempre desejamos conhecer novas perspectivas de aromas e sabores, que as cervejas ‘de verdade’ podem nos proporcionar”, opina Sampaio.

Tatiana Torres (35)

Questionado sobre o mesmo tema, como consumidor, o analista de Logística Tiago Gonçalves comenta que consome as cervejas industrializadas, mesmo sendo apreciador das artesanais há mais de seis anos. “Eu nasci e fui criado na fronteira do Brasil com o Paraguai. Lá nós consumimos muita cerveja industrializada. Faz parte da cultura.” A contadora Tatiana Torres diz que as cervejas industrializadas fazem parte do cotidiano de todos, sendo difícil abandoná-las totalmente. “Sempre tem na geladeira de casa, ou nos churrasco de amigos. Eu conheço as artesanais há mais de sete anos e prefiro tomá-las, se disponíveis, mas, se tiver das outras, não deixo de tomar”, completa Torres.

Para Sampaio, os consumidores se mantêm fiéis às artesanais devido à qualidade e à consistência das cervejas, mas também pelos aspectos intangíveis da experiência. “Faz diferença fornecer todas as informações possíveis para que a experiência de tomar as cervejas seja enriquecedora, pois há histórias sobre estilos e processos que envolvem também a criatividade”, diz Sampaio.
Cuidados para não errar
Quem nunca quis impressionar seu par romântico montando aquela super mesa cheia de alimentos e vários tipos de cervejas para um belo show de harmonização? Você já tentou impressionar os amigos com uma cerveja diferente no churrasco, ou ainda, bancar o chef de cozinha usando uma cerveja na produção de um prato? A intenção pode muitas vezes ser boa, mas o resultado pode ser um estrago quando não se tem conhecimento. Utilizar uma cerveja durante o cozimento de um prato não é algo tão simples, e deve ser feito com moderação e com resultados de testes anteriores em mente. Segundo Sampaio, elas servem como mais uma ferramenta para agregar valor à elaboração e ao serviço. “Você pode usar cerveja para a redução de algum molho ou até incorporá-la numa sobremesa. O leque de uso é bem diversificado e somente a experimentação pode nos dizer se chegamos ao objetivo ou não”.
Para Nery, que é professor de harmonização de bebidas, é necessário ter conhecimento sobre os vários tipos de harmonização e o nível alcoólico de uma cerveja antes de usá-la. “Harmonizar uma cerveja IPA com um hambúrguer é fácil. É uma harmonização clássica, conhecida, que todo mundo conhece e faz. Mas muitos não entendem o porquê desse tipo de harmonização. Tem toda uma teoria e diretrizes por traz disso”, defende Nery, que alerta também sobre o erro na escolha de cervejas. “Uma IPA, por exemplo, vai bem com churrasco porque você tem, de um lado, gordura e, de outro, uma cerveja com bastante lúpulo e um alto teor alcoólico. Aí a pessoa marca um churrasco e coloca somente IPA para as pessoas tomarem. Essa cerveja tem 7% de álcool; em 1 hora e meia você acaba com o churrasco, pois a maioria das pessoas já estará embriagada. Já uma pessoa com conhecimento vai servir primeiro uma cerveja mais leve, deixando essa ou outras mais alcoólicas para o final.”
Reconhecimento da classe cervejeira
A Universidade de Sorocaba (Uniso) promove desde o ano de 2017 o Uniso Beer Tech. Criado com o intuito de promover a cultura cervejeira, o evento promove palestras, workshops e um concurso para a escolha da melhor cerveja, que é aberto a todos os produtores da região. Logo no primeiro ano, o evento teve 25 cervejas inscritas no concurso e, em 2018, no dia do encerramento do evento, foi montada uma grande festa dentro do campus da universidade, que contou com a presença de diversas cervejarias e food trucks da região de Sorocaba.
Além de promover a interação entre os alunos de graduação dos cursos de Engenharia de Alimentos, Gastronomia, Engenharia Agronômica, Engenharia Química e Engenharia de Biotecnologia e Bioprocessos, o evento busca também conscientizar as pessoas sobre a importância da cultura cervejeira e do consumo consciente. “Nosso lema é ‘beba menos, beba melhor’. A cerveja não foi feita para ser consumida em grandes quantidades; ela é um alimento, na verdade, e tem que ser apreciada como os outros alimentos”, defende Nery, que faz parte da organização do evento.
Nery ressalta, também, que a procura pela especialização dos produtores de cerveja — tanto aqueles que produzem de modo caseiro, apenas para consumo próprio, quanto aqueles que produzem para venda — tem aumentado, acompanhando o crescimento do mercado e fortalecendo ainda mais a classe. “No Brasil, tem crescido muito o número de cursos de especialização ou cursos livres em produção cervejeira. Alguns não são reconhecidos pelo Ministério da Educação, mas proporcionam um bom conhecimento aos alunos. Eles ajudam aquelas pessoas que não têm condições de ir fazer um curso de mestre cervejeiro na Alemanha, por exemplo, devido ao tempo, ao custo e ao idioma”, afirma Ricardo.
Visando a união e o fortalecimento da classe cervejeira regional, foi criada em 2017 a Associação Cerveja Livre. Ela é composta por microcervejarias da região metropolitana de Sorocaba, sendo elas: Cervejaria Synergy, Cervejaria Happy Brew, Cervejaria Bamberg, Cervejaria Burgman, Cervejaria Wayne 190, Cervejaria Sensacional’s Beer, Cervejaria Beer One, Cervejaria Imperatriz e Cervejaria Hoffen. Além disso, contamos também com a Abracerva, a Associação Brasileira da Cerveja artesanal, unindo forças para que pequenos produtores como nós tenhamos melhorias quanto à tributação”, declara Sampaio.

Agência Focs / Jornalismo Uniso
Texto e imagens: Rafael Filho

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