“Colocar um aluno de escola pública para disputar contra um aluno de escola privada é desumano”, diz diretor de escola estadual
Por Ana Torres (Agência Focs – Jornalismo Uniso)
No último dia 10 de novembro, encerrou-se o período de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024. Alunos do Novo Ensino Médio relatam dificuldades com o conteúdo do vestibular.

O resultado do Enem 2024 só será divulgado em janeiro do próximo ano e até lá a espera é apenas um dos desafios para muitos vestibulandos que desejam usar a nota do exame nacional para o ingresso no ensino superior e a obtenção de classificação satisfatória para programas como o Sisu, Prouni e Fies. A questão é que mesmo com a reforma do ensino médio, o sentimento de ansiedade e insegurança dos secundaristas de escola pública não foi apaziguado. Para alguns essa sensação pode até ter aumentado, assim como a percepção de desigualdade entre estudantes de instituições públicas em relação aos que cursaram o ensino privado.
Em entrevista com três alunos da E. E. Joaquim Izidoro Marins, localizada na Vila Angélica, em Sorocaba, os estudantes reforçaram constantemente o quanto se sentiam despreparados para fazer o vestibular, e que as implementações de novos projetos do governo não estavam tão condizentes com o que foi apresentado a eles. Os itinerários formativos ainda não contemplavam suas necessidades e as plataformas digitais se tornaram os guias das aulas base, e não um suporte.
A aluna A. C., 16 anos, fez o vestibular como treineira este ano e contou um pouco de como foi a sua experiência ao pegar a prova e ler as questões “isso aqui eu sei o que é, mas eu não estudei sobre isso porque quando estava no nono ano falaram que iria aprender no primeiro, aí eu cheguei no primeiro e passaram um pouquinho, mas falaram ‘não, você vai fazer isso no segundo’, quando cheguei no segundo, tinha itinerário, então eu não tive o que caiu ali”.
A aluna L. P., 17 anos, que participou de um cursinho de uma semana do colégio Objetivo, conta que as aulas eram ministradas pelos alunos do terceiro ano da escola particular, “eu me sinto realmente humilhada […], eles começaram a dar aula e eu fui ficando mais deprimida ainda, porque a cada cálculo que eles passavam, eu ficava, ‘gente, eu não sei fazer isso, eu não aprendi nem o básico, imagina isso daí! Como que eu passo no Enem? já roubaram a minha vaga’, acabou, eu aceitei isso, porque sinceramente é revoltante, é humilhante.”
Outras situações partilhadas pelos estudantes se relacionaram às baixas expectativas e à desmotivação com o ensino superior. A falta de desejo de cursar uma faculdade após o término do ensino médio torna-se um reflexo natural de não saber o que pretende fazer, considerando a convicção de que os diplomas serão apenas para conseguirem bicos ou virarem motoristas de aplicativo. A cobrança para passarem em cursos de maior concorrência, como medicina e direito, os deixaram desacreditados com os cursos que mais se identificam, deixando-os mais propensos a querer encontrar um emprego, visto que muitos estudantes da rede pública já fazem uma dupla jornada de estudo e trabalho.
A estudante A. C, de 16 anos, partilha deste ponto de vista, “quando você fala para uma pessoa que vai fazer o Enem para tentar entrar numa faculdade, a pessoa fala ‘nossa você vai ter futuro se fizer odonto, direito, medicina’. Eu quero fazer história e a primeira coisa que pensei quando sentei na cadeira, peguei a prova foi: ‘se eu tirar uma nota boa nisso daqui, não vou desperdiçar com história, não vou desperdiçar com nutrição’ que é outra coisa que eu gosto bastante, ‘eu vou para alguma coisa que vai me dar dinheiro, alguma coisa que não vai fazer eu me arrepender de ter feito a faculdade’ por que eu vou me dar bem com isso mesmo que não seja algo que eu gosto”.
Novo Ensino Médio e Itinerários Informativos
“Eu acho que os itinerários foram muito bem vendidos, pelo menos quando li, eu falei ‘nossa a pessoa que escreveu isso aqui tem muita lábia’, porque ele foi oferecido como algo que iria mudar sua vida. Eu lembro da frase perfeitamente como estava no computador: ‘escolha seu futuro’” A. C., 16 anos.
A reforma do ensino médio foi proposta em 2016 e sua aprovação veio a ocorrer no ano seguinte. Seu propósito era combater a evasão escolar – que mostrava números alarmantes desde o primeiro ano do ensino médio apontados pelo censo do MEC – tornando a escola mais atrativa para o estudante, entendendo sua realidade e facilitando o processo de entrada no mercado de trabalho.
Em entrevista com o diretor da escola estadual, Joemir Dultra, formado em história e mestre em educação e ciência, foi apontada a necessidade de haver uma reforma “não dá para negar, que os professores até pouco tempo atrás estavam dando as mesmas aulas que se davam no século XIX, e usando basicamente os mesmos critérios de avaliação”.

Entretanto, a proposta não foi bem recebida pelos estudantes, o que levou o projeto a ser implementado somente em 2022.
Na reforma, foram acrescentadas no primeiro momento aulas de tecnologia, projeto de vida, orientação de estudos e os itinerários formativos, e neste ano vieram a ser inseridas as aulas de leitura e redação, educação financeira e o Prepara Enem.
Para essas alterações ocorrerem, houve o aumento da carga horária dos estudantes de 800 horas anuais para 1000 horas, dedicando 40% de sua rotina aos cinco itinerários formativos oferecidos. A única exceção é a Formação Técnica e Profissional, que possui uma carga horária adaptável. Até 2024, essa carga era de 1.800 horas durante os três anos do ensino médio, e, a partir de 2025, passará a ser de 2.100 horas.
Excluindo português e matemática, que se mantiveram obrigatórias, o restante das matérias tradicionais (física, química, biologia, história, geografia, filosofia, sociologia e inglês) tiveram sua carga horária extremamente reduzida, ou retiradas para serem encontradas dentro dos itinerários de forma opcional, organizados da seguinte forma pelo Ministério da Educação:
- Ciências da Natureza e suas Tecnologias: Biologia, Física e Química transformaram-se para trabalhar com o aluno os temas de matéria e energia, vida e evolução, terra e universo dentro das salas;
- Linguagens e suas Tecnologias: Língua Portuguesa, Arte, Educação Física e Língua Inglesa foram as bases para trabalhar com o aluno os diversos tipos de linguagem independente da mídia, seja ela digital, física, corporal ou artística, pontuando a necessidade social e de trabalho;
- Ciências Humanas e Sociais aplicadas: Filosofia, Geografia, História e Sociologia ajustaram-se para capacitar o aluno a compreender movimentos sociais, políticos, econômicos, culturais e históricos;
- Matemática e suas Tecnologias: Matemática foi utilizada para trabalhar no aluno a capacidade de compreender problemas sob a análise e a lógica, além de trabalhar as estatísticas, geometria, tecnologia e conceitos da engenharia;
- Formação Técnica e Profissional: esse itinerário trabalha em conjunto com outras instituições, sejam elas regionais, municipais, públicas ou privadas, para preparar a autonomia do aluno e para o mercado de trabalho.
Mudanças que não agradaram
Além das matérias terem sido desmembradas, a oferta do itinerário do interesse do aluno depende da estrutura escolar e da demanda da maior parte dos estudantes, já que a maioria das escolas de ensino público só conseguem oferecer de 2 a 3 itinerários. Para o aluno que não tem seus interesses contemplados, é indicado olhar o catálogo de outras escolas e considerar a possibilidade de pedir transferência – o que não é prático e nem viável para o estudante. Por isso, o diretor Dultra considera desumano “colocar um aluno de escola pública para disputar com o aluno de escola privada”.
O diretor pontua outro problema. “quando eu vi o projeto pela primeira vez, qual era a ênfase? Era preparar o aluno para o mundo atual, para o mundo contemporâneo. Porém, eu ainda via a necessidade de trabalhar um pouco mais o embasamento teórico dos alunos. O aluno pode escolher, mas ele tem que saber como é que funciona determinadas áreas que ele não vai ter acesso a partir do momento que ele escolhe, ele tem que ter uma noção básica”.
Esse ponto levantado pelo diretor foi reproduzido por diversos alunos desde o ano passado, visto que as aulas abordam temas específicos sob o guarda-chuva das matérias tradicionais, mas que no todo não preparam o estudante para uma direção concreta, muito menos contempla as questões que estarão no Enem. Essa realidade inclusive levou muitos professores a adiantarem ao máximo os conteúdos obrigatórios dos itinerários, para depois lecionarem as matérias que foram retiradas da grade do aluno, dando suporte para aqueles que ainda querem prestar o Enem ou qualquer outro vestibular.
Visto a onda de reclamações, o governo sancionou, no dia 31 de julho deste ano, mudanças na reforma do ensino médio. Alterando a carga horária destinada às matérias tradicionais de 1.800 horas para 2.400 e retornando para a grade os conteúdos que foram retirados dos alunos por 2 anos (física, biologia, história, sociologia etc.). Entretanto, essas mudanças estão previstas apenas para as turmas que irão se iniciar em 2025.
Plataformas digitais: avanço ou atraso?

“a questão da plataforma é como se a gente fosse um monte de gado que eles estão esperando dar resultado. Então tipo, eles nunca vão mostrar o resultado de alguém que ‘nossa, esse cara fez um ano de Allura seguido e ele entrou numa faculdade de matemática’, não, é tipo ‘a galera do estado de São Paulo atingiu todas as metas de Khan Academy, SPeak, Me Salva!, Leia’ então não é um negócio voltado para a gente estudar em si, mas é como se fosse só para a gente bater um número” Alexandre, 18 anos.
Um diferencial do ano passado para esse é o acréscimo de mais plataformas para auxiliar os professores e estudantes na jornada escolar, elas podem ser acessadas pelo CMSP ou Sala do Futuro que direcionam os alunos aos aplicativos do Khan Academy, Matific, Speak, Leia, Allura, Me Salva!, Redação ou Tarefas.
As matérias foram separadas pela plataforma que melhor correspondia às suas necessidades. Matemática, orientação de estudos e física podem ser encontrados no Khan Academy (Matific também trabalha a matéria de matemática); inglês no SPeak; robótica e tecnologia na Allura; o Leia é mais utilizada para português e práticas de leitura; Redação e Tarefas são intuitivas para redação e a realização de lições de todas as disciplinas respectivamente.
As opiniões divergem, parte dos profissionais da rede pública alegam que havia a necessidade de inovar. O professor Everton Ribeiro, formado em Letras e que leciona aulas de português e orientação de estudo para primeiros e segundos anos da escola pública anteriormente citada, entende que “do meu ponto de vista, eu creio que tudo isso tenha vindo ao encontro da otimização do processo, e infelizmente as pessoas têm o péssimo hábito de achar que o novo é ruim, até que o novo se torne velho e venha algo posterior”.
Os alunos discordam, a aluna L. P. 17 anos, afirmou que as plataformas são só para baterem metas, “não importa se você aprendeu ou se não aprendeu, não importa se o conteúdo está de acordo com as suas habilidades que você aprendeu até o momento, você tem que bater a meta, se não bater a meta, você não recebe a sua nota”. O trio de estudantes também expuseram que as plataformas têm diversos problemas, e que especificamente o Khan Academy poderia ser burlado muito facilmente, realizando tarefas de anos anteriores que entregariam a quantidade de pontos necessários para a avaliação de nota.
O professor Alexandre Santos Mariano, formado em pedagogia, história, educação física e responsável pela sala de leitura da escola, foi designado para ser o representante da diretoria de ensino, juntamente com outra professora da E. E. Prof. Izabel Lopez Monteiro, para desenvolver questões para os livros da plataforma Leia. Em entrevista, ele expôs que a plataforma ainda não está 100% desenvolvida, erros como a falta de registro mesmo após a leitura finalizada ou mal gerenciamento da exposição das questões obrigatórias ainda ocorrem na plataforma.
O diretor mostrou compreensão pelos dois lados, vendo o avanço positivo para as escolas, ao mesmo tempo que relatou seu problema “eu morro de inveja desses alunos, porque na minha época a gente não tinha acesso a essa gama de conhecimentos que se tem hoje. Hoje você não precisa de um dicionário, você digita a palavra no google e já vem a definição, a tecnologia avançou de uma maneira assustadora e linda. Eu gosto das plataformas, meu problema não é com as plataformas, meu problema é como elas estão sendo implantadas nas escolas: maciçamente.”