Um maio “maió”. Será que deu para entender a mensagem?
Ia uê ererê aiô gombê,
Com licença do curiandamba,
Com licença do curiacuca,
Com licença do sinhô môço,
Com licença do dono de tera.
“O cantador pede licença ao mais velho, ao cozinheiro que também sabe cantar, ao sinhô moço e ao dono da terra (ou lavra) para poder cantar” (Machado Filho 1985, p. 94).
Assim como no Canto I do disco O Canto dos Escravos, gravado por Clementina de Jesus, Tia Doca e Geraldo Filme, começo os trabalhos hoje pedindo licença aos meus ancestrais e a quem me lê, para falar. Ou melhor, escrever. Pois a coluna de hoje apesar de ser em um mês que possui uma data tão controversa, o 13 de maio, É HISTÓRICA!
Por qual motivo a data é controversa?
“O problema não é o 13 de maio, é o 14”. Ouvi essa frase em uma palestra certa vez. Em uma entrevista para o meu livro-reportagem Jorge Narciso de Matos, um Mestre Sala nos Mares Sociais, a professora Ana Maria de Souza Mendes, co-fundadora do Nucab (Núcleo de Cultura Afro-Brasileira de Sorocaba) me disse outra frase impactante: “O 14 de maio continua até hoje. Ele nunca foi falado nas escolas”.
Agora eu lanço a minha:
“Pessoas pretas são espancadas e assassinadas pela polícia. Mulheres pretas tem seus corpos visados somente como peça de satisfação sexual. População 60+ preta trabalhando até a morte para não morrer de fome. Criminalização de todo tipo de arte e cultura proveniente da pele preta. Predominância de pessoas pretas em situação de rua. Todos os tipos de racismos sendo praticados diariamente. Falta de políticas públicas que valorizem as pessoas de pele preta. Pense bem. Reflita: será que estou falando de 14 de maio de 1888 ou de 2025?”
Complemento com a célebre canção 14 de Maio — que faço questão de transcrevê-la por completa — interpretada pelo cantor baiano Lazzo Matumbi:
No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci
Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia
Um dia com fome, no outro sem o que comer
Sem nome, sem identidade, sem fotografia
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver
No dia 14 de maio, ninguém me deu bola
Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver
Nenhuma lição, não havia lugar na escola
Pensaram que poderiam me fazer perder
Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta
Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu
A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa
Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu
Será que deu pra entender a mensagem?
Se ligue no Ilê Aiyê
Agora que você me vê
Repare como é belo
Êh, nosso povo lindo
Repare que é o maior prazer
Bom pra mim, bom pra você
Estou de olho aberto
Olha moço, fique esperto
Que eu não sou menino
O que faz a coluna de hoje histórica?
Histórica pois falarei de algo muito importante para mim e para meus irmãos de raça: a I Conferência Municipal de Promoção de Igualdade Racial de Sorocaba. Cidade que possui, segundo o IBGE, 233.365 mil habitantes autodeclarados Pretos ou Pardos. De acordo com o COMPIR (Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e Promoção de Igualdade Racial) órgão que convocou a Conferência, ela “representa o anseio dos movimentos negros e aliados, e de toda uma sociedade, em refletir, formular e construir, junto ao coletivo, políticas públicas para combater todas as formas de violências”.
Contando com a parceria da Associação Ação Periférica e do Núcleo ETC UFSCar/Sorocaba, a Conferência fechou a Semana de Cultura e Arte Negra de Sorocaba. Foram quatro dias de muitas atividades: apresentações musicais e artísticas; Feira de empreendedorismo Afro com talentos locais; exibição de curta-metragem e documentários; Slam de poesia; Exposições que contaram a história da cultura negra e debates importantes sobre a 2ª Década Internacional Afrodescendentes definida pela ONU e os temas da 5ª Conferência Nacional de Promoção de Igualdade Racial.
A Conferência Municipal precedeu a Estadual que está prevista para acontecer no Memorial da América Latina entre os dias 25 e 27 de julho, na cidade de São Paulo, e a Nacional, prevista para o mês de setembro em Brasília. Tive a noção da sua importância ao perceber que uma ideia/proposta apresentada em Sorocaba pode se tornar uma política pública nacional.
Trabalhei como facilitador de um Grupo de Trabalho que coletou ideias/propostas da população dentro da temática do Eixo III – Reparação. Tivemos mais dois eixos: I – Democracia e II – Justiça Racial, oriundos do Tema Central da Conferência: “Igualdade e Democracia: Reparação e Justiça Racial”. Fechamos o GT com dez propostas, sendo todas aprovadas por unanimidade na plenária final.
Tive ansiedade e receios de não dar conta? Tive sim. Mas fui muito bem orientado pelo Mestre José Marcos de Oliveira (um dos organizadores do evento) e acolhido pela minha relatora e colega de GT, professora Adilene Cavalheiro.
Que experiência incrível. Vi o quanto não é fácil realizar uma conferência. Visualizei todo o rito. Aprendi a diferença entre moção, proposta e tese. Vi o quanto nossa cidade é deficitária nas questões do cuidado e proteção da população negra, povos indígenas, quilombolas, povos ciganos; público LGBTQIA+; pessoas negras com deficiência; Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana; e Povos de Terreiro (tópicos abordados no meu GT).
Foi muito bom encontrar e caminhar ao lado de muitos de meus ídolos pretos e ídolas pretas da minha cidade. Que emoção! (não citarei nomes para não correr o risco de esquecer de algum).
Encontrei alunas de primeiro semestre de jornalismo já indo à campo sem medo. Um jovem negro estudante de Publicidade e Propaganda que fez toda a arte do evento. Dei até entrevista. E para um jornalista preto das antigas que hoje tenho a honra de dividir a sala de aula do mestrado.
Para finalizar, deixo uma mensagem da organização do evento:
“Diante de um sistema perverso, que teima em nos desumanizar com palavras, ações e atitudes, retirando direitos conquistados após muitas batalhas e normatizando a violência contra uma camada da sociedade denominada como “minoria”, é necessário que neste espaço democrático de direito que é a conferência, possamos olhar pra trás, não com saudosismo, mas como um alimento para trazer luz às ações no presente e fomentar a esperança de um futuro melhor, para todos e todas.”
E assim como na Conferência que começamos com música (apresentação de canções de terreiro) e terminamos com música (samba da Escola, aniversariante do dia, Planeta Negro) encerro a coluna de hoje utilizando o Canto IX para dizer que independente da lambá (trabalho pesado) que o opressor queira nos impor, ao contrário do irmão não pediremos que a morte nos liberte, porque vamos continuar lutando. Somos Baobá, somos filhos da RESISTÊNCIA!
Ei ê lambá,
quero me cabá no sumidô
que me cabá no sumidô,
lamba de 20 dia
ei lamba,
quero me cabá no sumidô
“O negro queixa-se do serviço duro (lambá) e pede a morte” (Machado Filho, 1985, p. 93).
Será que deu para entender a mensagem?
Saiba mais:
MACHADO FILHO, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.
O Canto dos Escravos: http://youtube.com/watch?v=EQ_mWv_dxYo&list=PLjbSv6n9Sa-iGQjsZiOJY_45Dub5e-aZz.
14 de Maio: https://www.youtube.com/watch?v=mjORYovN9iY&t=1s.
Eai, ficou mais enegrecido?

Que texto maravilhoso e enegrecedor. Transformou meu banzo em visionário legado, pois seja à pé, no caminhar ou a nado, limparemos todo o sangue e choro ancestral, jorrados ao mar do trafico transatlântico de pessoas Pretas. Parabens, Rafael, e todos os envolvidos.