Jornalismojornalismo onlineSorocabaUniso

O mundo do glamour e excentricidade das drag queens performado por mulheres

Por Livian Regaçoni  (Agência Focas – Jornalismo Uniso)

Uma mulher cisgênero pode ser considerada uma drag queen? Em um meio tradicionalmente dominado por homens, que criam personas com nomes artísticos e se apresentam usando trajes associados ao feminino, não é comum encontrar mulheres participando desse universo. No entanto, elas existem. Nossas entrevistadas representam uma minoria na cena drag de Sorocaba, mas provam que a arte drag pode ser vivida por todos, sem limitações.

As artistas Misaki Mei, de 19 anos, e Kerolim Marcelino, de 33, são duas das poucas drag queens de Sorocaba. Além de dividirem o amor pela mesma arte, compartilham de uma amizade que transpassa o mundo dos shows e apresentações. Sendo adotadas pela mesma “mãe drag” — termo usado para artistas com mais experiência na cena, que apadrinham performers mais jovens. Assim, tornaram-se irmãs de coração em meio a loucura da rotina e as dificuldades enfrentadas por artistas dissidentes.

‘A Casa das Monstras’, criada por Pandora, mãe drag de Misaki e Kerolim. (Foto: Arquivo pessoal).

A cultura drag pode parecer, para quem vê de fora, um conjunto de perucas glamourosas, maquiagens elaboradas, saltos altos e performances alegres e dançantes. No entanto, para estas mulheres, ser drag faz parte de suas essências. Vai além naqueles minutos em cima de um palco ou passarela, é um verdadeiro estilo de vida.

“Minha ‘descoberta’ aconteceu por acaso. Sou maquiadora artística e uma das minhas clientes, que é DJ, costumava tocar em Ballrooms — movimentos que celebram a cultura drag e a diversidade dentro da comunidade, misturando entretenimento com ativismo político. Fui com ela a um desses eventos e, lá, conheci a Pandora, uma drag veterana da cena sorocabana. Em poucos minutos de conversa, ela me olhou e disse: ‘Você é uma drag queen.’ Fiquei sem entender, já que, para mim, apenas homens podiam fazer drag. Na minha visão, eu era apenas uma mulher que gostava de se produzir.” É o que conta Misaki, que participa da cena drag há mais de dois anos. Ela afirma que, desde aquele dia, nunca mais se enxergou de outra forma além de como uma drag queen.

Misaki em: ‘Projeto Persona’, 2024. (Fotos: Arquivo pessoal).

Desde então, Misaki faz apresentações artísticas nos eventos da comunidade drag. Segundo a mesma, suas performances têm toques mais teatrais. “Gosto de contar uma história, é uma pegada mais artística. Não sou muito dançarina nem tenho muita afinidade com lip sync. Costumo me montar de uma forma que a pessoa olhe e fique se perguntando: o que é aquilo em cima do palco?”. Tanto Misaki quanto Kerolim adotam um estilo drag alternativo, marcado por maquiagens góticas e figurinos que, muitas vezes, remetem a seres místicos.

Kerolim, muito semelhante à sua irmã drag, entrou nesse universo “por acaso”. “Eu frequentava eventos drag, e várias pessoas vinham me perguntar se eu também era uma, algo que ficou cada vez mais frequente. No meio disso a Pandora me ‘adotou’, e eu fiquei conhecida como filha dela. Para todos, eu já era Karolim Moon, filha da Pandora Moon. Foi assim, simplesmente me avisaram que eu era uma drag queen”.

Kerolim em: ‘Mini Colors Ball’, 2024. (Fotos: Arquivo pessoal).

O por acaso não foi tão acaso

Embora descrevam o início da jornada como drag queens como algo não planejado, tanto Misaki quanto Kerolim já possuíam um envolvimento com a cultura drag, mesmo sem perceberem.

Kerolim está no mundo das artes desde muito nova e conta que canta já há vários anos. Além disso, ela é maquiadora e cabeleireira, o que a aproximou mais ainda do aspecto estético das performances e apresentações. “Sou cabeleireira há 22 anos, é minha paixão, ajudar a devolver a autoestima para as pessoas é uma coisa mágica para mim. Quando me monto como drag e participo das Ballrooms, isso ajuda a aumentar a minha também. Eu adoro me olhar no espelho e me ver montada, me sinto eu mesma”.

Kerolim também explica o porquê de não usar um nome diferente para sua drag: “Eu sou a pessoa que está ali em cima do palco, não existe uma persona. Essa drag sempre esteve dentro de mim, eu que ainda não sabia”. A artista conta que conseguiu trazer sua paixão pelo canto para suas performances, “o que eu mais faço são apresentações cantando. Uma que me marcou muito foi feita com a Misaki, eu cantei ‘Maria de Vila Matilde’ para ela performar”. 

Ambas as artistas trazem propostas diferentes em suas apresentações, mas levam a irmandade também para dentro dos palcos quando estão juntas. “Uma vez, participamos de um evento com o tema Pokémon juntas. Eu fiz um Pokémon fada e Misaki era o mestre. Trabalhamos juntas não só ali na hora, mas também na construção do figurino, cabelo, maquiagem e coreografia. Seria muito mais complicado se não tivéssemos a ajuda de uma a outra”, diz Kerolim.

Kerolim e Misaki, irmandade que vai além das performances. (Foto: Arquivo pessoal).

Para Misaki, não foi muito diferente, a jovem conta que sua “veia artística” esteve presente desde seus primeiros anos de vida, manifestando-se nas roupas que criava para suas bonecas com embalagens e pedaços de papel, ou nas maquiagens que passava no rosto às escondidas da mãe. “Eu era uma criança meio doida, gostava de guardar tudo quanto é papel e embalagem para fazer roupas para minhas Barbies, nem as embalagens de chocolate escapavam, também juntava vários pedaços de papel crepom e fazia roupas para minha família, maquiava minhas bonecas, cortava os cabelos e por aí vai”.

As façanhas de Misaki não permaneceram apenas na infância. No início da adolescência começou a  procurar cursos para se profissionalizar e trabalhar com sua primeira paixão: a maquiagem. O que levou a jovem a atuar como maquiadora desde os 15 anos e, hoje, fazer todas suas produções como drag queen, desde roupas até os cílios postiços. “Meu nome de drag é um trocadilho com maquiagem, me chamo Misaki Mei, a comunidade começou a me chamar de Misaki Meiki. As maquiagens elaboradas, artísticas e alternativas sempre foram uma característica minha”.

Misaki conta que já chegou a passar 12 horas em uma única produção. “Muitas vezes pinto todo o meu corpo com tinta, crio adereços para o cabelo e figurinos, isso leva bastante tempo”. Seus looks para as performances são pensados por ela mesma. A artista diz que procura entender o sentimento que a música passa e desenvolve seu visual a partir disso.

Performance no ‘Resistencia Drag’, no SESC. (Foto: Arquivo pessoal).

Ambas as mulheres já estavam inseridas no meio artístico antes de se tornarem drag queens, e suas vivências as ajudaram a se encontrar nesse espaço de pertencimento, como elas mesmas afirmaram durante as entrevistas. Kerolim complementa: “Eu nasci assim, é parte de quem eu sou.”

Ser mulher no mundo drag

Misaki e Kerolim construíram uma relação de companheirismo e irmandade dentro da comunidade. Ambas destacam como a família é uma das partes mais importantes da cultura drag, ressaltando a forma como todos se ajudam e se apoiam mutuamente. No entanto, isso não exclui as dificuldades enfrentadas por ambas como mulheres em um meio dominado por homens, onde muitos que observam de fora não valorizam suas manifestações artísticas.

“Eu acho que é difícil estarmos em qualquer lugar. Porque, querendo ou não, apesar de as drag queens serem mais vista e reconhecidas hoje, ainda há muito preconceito, principalmente porque sou uma mulher cis. É um lugar de não pertencimento para mim. Eu sofro preconceito fora da cena e dentro dela, tem quem não me considere tão drag quanto às outras por ser mulher, olham para mim e dizem coisas como: “Ah, você não tem cara de drag, você tem cara de mulher”. A mulher sofre vários tipos de micro violências todos os dias, e sendo drag não é diferente”. O relato de Misaki não vem de um lugar de mágoa, mas sim de empoderamento, já que ela diz que casos como esse não a afetam tanto quanto poderiam, graças ao apoio que encontrou em sua família do coração.

“Eu vivia em um meio tóxico, onde ouvia muitos comentários sobre como eu não me encaixava naquele lugar, já que ser drag era uma coisa apenas para homens. Mas quando consegui me desvencilhar disso, minha família estava lá para me apoiar. A Pandora me ajudou demais, sempre afirmando que era sim meu lugar, e fazia parte de quem eu realmente era”, Misaki conta que esses episódios a abalaram no início da sua jornada como drag, mas que, com o tempo e ajuda de seus companheiros conseguiu se manter firme.

“Enfrentamos dificuldades todos os dias, porém é a acolhida que nos faz continuar. Somos uma grande família. Todos sempre me encorajaram, dizendo que eu pertencia e tinha potencial para continuar fazendo aquilo”. É o que conta Kerolim, a cabeleireira confessa que não leva uma vida fácil, e que a vontade de desistir é algo constante. “Eu sou mãe, autônoma e pessoa não branca que mora na favela; nenhum dia é fácil. Às vezes, conversando com a Misaki, brincamos sobre desistir de tudo. Mas a paixão pela arte sempre fala mais alto”, completa.   

O amor pela arte falou e ainda fala mais alto do que os obstáculos encontrados pelo caminho de Misaki e Kerolim, além dos preconceitos. Ambas relatam que o retorno financeiro é escasso e esporádico, o que dificulta mais ainda o dia a dia. “Infelizmente, não temos uma boa remuneração e reconhecimento, essa é a realidade. Se bobear, precisamos até pagar para participar de alguns eventos, já que precisamos investir muito tempo e dinheiro nas produções”. Diz Kerolim. Ela faz todas suas maquiagens e figurinos, e muitas vezes contrata profissionais para ajudá-la, sendo todo o investimento bancado por ela. 

Kerolim usa uma lua na testa em suas produções, em alusão ao seu nome drag ‘Kerolim Moon’. (Foto: Arquivo pessoal).

Misaki também investe boa parte de seus ganhos nas suas apresentações, e tem uma rotina cheia para conseguir acomodar todos os gastos que precisa fazer com sua drag. “Quando comecei, meu pai perguntou se eu tinha certeza de que era realmente o que queria, ele falou: “Quer mesmo ser artista? Não vai ser fácil”. Eu sabia que não seria, nunca imaginei que fosse, mas era e é minha paixão. Eu não faço drag por dinheiro, faço por amor. É muito difícil conseguirmos ganhar alguma coisa nesse meio”.

Kerolim deixa claro que, apesar das dificuldades diárias que enfrenta, nunca conseguiria viver sem sua arte. “A cultura e a arte, não só a drag, mas de forma geral, oferecem um espaço para pessoas como nós, pessoas diferentes que não são tão aceitas em outros lugares. Dentro da cultura drag os corpos e padrões admirados são outros. São lugares que conseguimos simplesmente ser e pertencer, sem julgamentos. É muito difícil sobreviver de arte, mas o povo não vive sem ela”.

Misaki e Kerolim mostram que ser drag queen vai além de usar uma peruca e dublar a música pop do momento; é uma forma de expressão e manifestação artística que empodera e ressignifica o que “deveria” ser belo. É uma maneira de fugir do óbvio e criar um mundo ao qual aqueles nunca se sentiram pertencentes possam, finalmente, ter seu lugar.

Misaki e Kerolim se encontraram na cultura drag. (Fotos: Arquivo pessoal)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *