Para sempre a mesma casa, nunca mais o mesmo lar
Por Maria Luiza Weiss (Agência Focas – Jornalismo Uniso)

Era uma manhã fria de um recente outono, uma quarta-feira de março que poderia, que deveria ter sido como todas as outras. Mas no ritmo do vento, um coração se fez fraco, suas batidas perderam o fôlego e ele parou, arrancando engasgos. Ao mesmo tempo d’aquele dia 24, a porta de um sobrado acolhedor, frenético e guardião de histórias e corações recheados de amor, bem no meio da Vila Cubatão, bateu forte, como se sofresse também.
Poucos dias depois, 22 de abril mais precisamente, à meia-noite de quarta para quinta, a porta não bateu. Ela se fez silenciosa, seu grito era tanto que fora sufocado por todos os outros ao redor, n’aquela mesma madrugada, a luz vermelha de uma sirene manchou todos os muros do bairro. “A senhora pode ir até o hospital?”, o motorista da ambulância perguntou à mulher debruçada sobre a janela da casa ao lado.
Naquele momento, Maria Carolina Weiss acordou o seu marido trêmula, já sabendo a resposta e ligou para o seu irmão. “Vocês querem ver o corpo?”, perguntou uma enfermeira em meio a imensidão branca que parecia devorar tudo o que eles já conheceram como amor “É melhor não ver mesmo, acredite, ela não é a mesma que vocês conheceram”.
O sobrado marrom também não era. Nunca mais seria. Eduardo José Santos e Maria Cláudia de Melo Campos Santos morreram no auge da pandemia do Coronavírus no início de 2021, vítimas de Covid. O casal se conheceu em 2002 e casaram-se no ano seguinte; quando morreram, seus dois filhos tinham 16 e 14 anos.
N’aquela mesma madrugada, os enfermeiros responsáveis pelo quarto de Maria Cláudia, contaram ao seu cunhado e irmão que ela implorava à eles que a salvassem, pois ela precisava voltar para casa. Seu marido já havia morrido pelo vírus, e seus filhos esperavam por ela. Todos se sentiram compadecidos, queriam vê-la sair do hospital. No fim o corpo se foi, mas já sem alma, sua aliança se perdeu no caminho e nunca mais fora vista.
O lar que foi palco de inúmeros churrascos, de horas intermináveis de música gaúcha e sertaneja, com a narração de um jogo de futebol de fundo, pilhas e pilhas de papéis espalhados por toda a sala, inúmeros fios que se enroscavam uns nos outros, caixas com relíquias de Natal; retratos de seus filhos, sobrinhos, irmãos e pais, as almofadas, as roupas – tudo. Tudo deixou de existir; como se da noite para o dia, seus objetos tivessem evaporado da Terra, como acontecera com os próprios donos. Nada mais brilhava e tudo que parecia sobrar era o silêncio ensurdecedor dos cômodos sem vida.
“Podemos trazer as roupas e os objetos, e daí os móveis a gente deixa lá”, o garoto mais velho falou para o padrinho, seus olhos vermelhos e a voz embargada fazia o homem mais velho amassar seus punhos no sofá antigo da casa da sogra enquanto segredava o soluço no mais profundo de sua garganta. “João, os móveis não podem ficar na casa, vai ter que devolver ela, vamos ter que doar ou jogar fora o que não der para ficar aqui na vó”. “Ah é? Temos que devolver, eu esqueci”, o menino parecia homem, estava resoluto, conformado. Horas antes, abraçado à avó que dava adeus a sua primogênita – em pranto entre quatro paredes, sem coragem de ir ao cemitério –, ele exclamava que sabia, sabia que a Maria Cláudia não iria deixar o Eduardão dela sozinho.
De acordo com um estudo realizado pelo The Lancet – Regional Health, entre 2020 e 2021, cerca de 284 mil jovens entre zero e 17 anos se tornaram órfãos ou perderam um cuidador por conta de Covid-19. Desses, 70,5% dos órfãos perderam o pai; 29,4%, a mãe; e 160 crianças e adolescentes perderam ambos os pais no Brasil. João Vitor e Pedro Augusto de Melo Campos Santos são dois deles.
O lar que antes parecia uma zona alegre e bagunçada, organizada de uma forma que só seus moradores sabiam decifrar e conheciam cada canto, hoje está vazio. As paredes da frente, outrora de um marrom escuro e elegante, se tornaram amarelas-mostarda, enquanto suas janelas e portas foram tingidas de um azul-royal que pode ser visto já da esquina. O lado de dentro também foi reformado, a sala que antigamente era lotada de estantes e armários, agora é somente um fundo de cimento queimado, lindo e impecável, à espera de novos moradores, mas sem o riso dos antigos.


Não há mais o sofá debaixo da grande janela de madeira em que o menino mais novo passava toda a tarde e a noite vigiando os vizinhos. Ah, ele era super conhecido, tão conhecido quanto conhecia todos os segredos, amores e tretas da rua. Tudo que resta é o piso de porcelanato branco e gelado, tão gelado quanto as lágrimas que ainda escorrem por rostos e peitos desolados. Vagando pela casa, é possível sentir calafrios, quiçá seja medo ou saudade – nunca nenhum da família foi visitá-los no campo-santo; é de uma dor tão insuportável que todos se vêem apenas por meio de orações e fotos.
A cozinha tem portas de vidro agora e o sol de lascar da tarde de domingo invade o cômodo dourando os azulejos níveos. O fantasma de uma mesa pequena em frente a primeira porta paira ali, mas não só ele, há uma gargalhada, forte, vivaz, que celebra a vida também. Era a antiga dona da casa. Oh, como ela amava sentar-se ali, seu filho mais velho está ao seu lado, há linguiça do pai e pão da mãe no prato, já o filho mais novo está na cadeira da frente; ele come arroz, feijão e batata-frita – mais finge do que realmente come. Está chamando o pai que está do lado de fora, há fumaça em toda a sua cara e a mesma começa a invadir a casa do lado. Ele está dançando, os pés trotando no ritmo gauches enquanto assa o churrasco.
Os risos e sorrisos dos mais velhos se dissipam para todo o sempre, o que fica são os dos dois garotos, mas estes estão bem longe daqui, bem longe da casa que foi seu lar por anos, que viu seus pais casarem, que viu cada um dos dois nascerem, crescerem, caírem e se levantarem – e que teve de dar adeus também, que teve sua porta esmurrada em um soco de raiva e choque pelo desfecho da vida, seus vidros estilhaçados como se fossem os próprios pulmões parando de funcionar, porque os corações que batiam ali, eles mesmo já haviam partido.

Algumas pessoas não perderam só o pai, a mãe ou mesmo os dois na pandemia. Elas perderam suas identidades, perderam seus lares, seus porto-seguros, perderam tudo o que conheciam e consideraram como o seu mundo durante toda a sua vida até aquele momento por causa do Coronavírus.
A pedagoga Ana Julia Pontes, de 26 anos, tinha somente 20 quando deu adeus à sua mãe e trata até hoje a culpa que carrega por ter sido a primeira a pegar o vírus na escola em que trabalhava. Para ela, o mais doloroso foi como em fevereiro daquele ano, sua mãe a chamou na sala e lhe deu um caderno com todas as senhas e informações que ela poderia precisar de bancos, entre outros documentos importantes. “Se eu morrer, você tem que cuidar de tudo”, ela dizia, e Ana Julia, chorando, falava que era claro que ela não iria morrer, e deveria parar de falar besteira.
Alguns dias antes de ser entubada devido a sua “ansiedade” e sofrer duas paradas cardiorrespiratórias, fenecendo então, dona Maria José brincou com a filha, “Quando eu sair daqui, preciso pintar o cabelo”. Ana conta que ela era assim: de bem com a vida. Vivia de salto alto e era chamada de ‘toc-toc’ pelo som que retumbava de seus sapatos ao andar; só vestia roupas coloridas e estampadas, sempre disposta a ajudar. Pintava seu cabelo constantemente d’um ruivo-raposa.
“Nós nunca entramos na sala”, afirma a pedagoga enxugando a bochecha, sua voz está abafada pelas lágrimas quentes, mas ela se mantém firme. Não quer parar de falar, segundo ela, as duas faziam tudo juntas, ela só quer poder falar de sua mãe – pois é como se ela ainda estivesse presente.
O antigo lar da família era dividido em duas casas, a de Maria José, onde vivia com os dois filhos e o marido, e a da avó de Ana. Após a morte da mãe, o pai entrou em uma depressão, e os filhos também não conseguiam mais ficar tão frequentemente em casa, assim, naturalmente, todos começaram a morar com a vovó.
Ainda há situações em que o antigo lar é visitado e até mesmo usado, no entanto, na sala de estar, mencionada por Ana Julia, ninguém entra. A mãe, que era artista e artesã, fazia colares e seu marido, que sempre a incentivou, construiu bem no canto do cômodo uma mesa com um busto de manequim para ela usar na hora das suas fabricações. “Aquele era o canto dela. Ainda está lá, colocado no busto, o colar que ela estava fazendo antes de falecer”.
Só agora, quatro anos depois, a família Pontes reuniu força para começar a olhar os pertences de Maria José e separar alguns para doação. Já o colar… Permanece vivendo lá, sem corpo; tal como a família mora na casa da avó, logo ali ao lado, sem espírito.
A assistente social, Paola Falceta, movida pela dor e revolta da morte da mãe também em 2021 pela doença provocada pelo coronavírus no Brasil, fundou a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas de Covid-19 (Avico), com o objetivo de buscar justiça e reparação. Falceta defende especialmente os jovens que muitas vezes já vinham de famílias de baixa-renda, ou que após a morte dos pais, não tiveram o suporte financeiro e emocional necessário. Em uma entrevista para a Agência Brasil em outubro deste ano, a vice-presidente da Avico ressaltou, ainda, que criança não pode falar publicamente, não dá entrevista e não reivindica por si própria, sofrendo uma invisibilidade chocante.
Atualmente, está em trâmite no Senado um projeto de lei que cria um fundo e um programa de amparo para os órfãos da pandemia. A Avico espera agora por uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal em Brasília, que solicita indenização para as famílias das vítimas. Aberta em 2021, a ação pede que cada família seja indenizada em, pelo menos, R$ 100 mil, e que as famílias de sobreviventes com sequelas graves ou persistentes recebam R$ 50 mil. Paola acredita na vitória, embora ainda não saiba quando ela virá.

Enquanto isso, fica a lembrança do que foram espíritos cheios de histórias, de paixão, de entusiasmo, de gratidão, de angústias, dores, tristezas, raivas, amores e os laços que eles fizeram, os muros que construíram e as plantas que regaram. Quartos, salas e escritórios foram desmontados, mas não só eles. Algumas moradas inteiras tiveram seus móveis, sonhos, alegrias, tristezas e vidas retiradas.
Andando por aquela casa, não o lar, o sobrado apenas – o esqueleto dele –, não havia pranto n’aqueles cômodos, só o vazio, a saudade e uma agonia, uma melancolia que só faz apertar com o tempo e não há remédio, ela é crônica; não tem o que todas as famílias que se despediram de caixões fechados façam, é uma enfermidade-furiosa, uma mazela que não irá passar, não há cura. A vida deles se foi igual aqueles objetos todos que foram valorizados e admirados durante toda a vida de cada um de seus proprietários, e só o que resta é a lembrança de como as paredes riam, o teto chorava e o chão dançava sob eles; muitas vezes sem haver sequer coragem para sussurrar o nome Maria Cláudia e Eduardo José.
