As estações ecoam resolutas dentro de nós, pois todos passamos pela vida
Um ensaio sobre o livro-reportagem “EnvelheSer” (2024) por Beatriz Jarins, e como todos nos encontraremos em algum lugar um dia, seja qual for ele, nós vivemos e isso se perpetua nos capítulos do cosmo. Somos os signos finitos no infinito
Por Maria Luiza Weiss (Agência Focas – Jornalismo Uniso)
No caminho para o meu trabalho há uma capela, ela fica dentro dos grandes muros avermelhados de um colégio católico tradicional da cidade. A imagem de Nossa Senhora das Graças, guardada longe da terra, bem no topo de uma torre é imponente, seguindo os que passam com seus olhos amorosos de mãe, sabendo tudo o que os aguarda, dando força para atravessar cada hora, cada minuto, cada cerco de momento. E bem em frente a muralha, há uma árvore ancestral, tão alta quanto os tijolos que cercam a escola.
Passo diariamente por ela, mais de uma vez, meus passos continuam perseguindo aquele tronco vetusto. Bem no centro dele há um cogumelo amarronzado – leiga, nunca ousei tocar meus dedos nele, medrosa de veneno, ainda que não o devore. As folhas da velha árvore permanecem prostradas ao chão ainda que o cântico da primavera ressoe em nossos ouvidos, recordando-nos de que logo Koré subirá para encontrar com sua mãe.
A folhagem está esparramada na calçada, seca e amarelada, se andarmos apressados, escorregaremos; se observarmos cada pé, é possível escutar os “creques” que estalam alto em nossos ouvidos. Indago-me quantas pessoas aqueles galhos observaram passar ao longo de sua vida plantia, quantas freiras ela viu deixar a igrejinha, quantos alunos correndo passaram por ela sem nem notá-la…
As páginas do livro-reportagem “EnvelheSer” de Beatriz Jarins continuam vindo-me à mente. Por uma brincadeira gentil do universo, eu o li nesses dias confusos de fim de estação – quando ainda estamos no inverno e faltam algumas semanas para a chegada da estação das flores, porém o sol já parece mais quente e o ar mais renovador, tão jovem quanto um coração apaixonado –, algo que particularmente encantou-me durante a leitura: como Beatriz narra a história de cada um de seus personagens a partir de um ciclo do ano.
A jornalista, tão desejosa de homenagear seus avós, presenteou o leitor com um respiro no meio do dia. Exatamente como aquele perfume de café coado no meio da tarde, ou aquele perfume tão característico que você tem certeza que foi feito especialmente para a sua avó porque somente ela o usa no mundo todo e o cheiro de couro dos sapatos do seu avô. Seus personagens são pessoas reais, a maioria com vidas não tão deleitosas, não tão florais quanto o amor que eles passam n’aquelas páginas, e ainda assim, tão viscerais.
Continuo pensando em dona Teresa e seu Inácio, que se encontravam no capítulo mais gelado. Engraçado, pois eu não gosto do inverno, dos quatro caminhos que temos que passar anualmente, ele é o que eu sempre espero passar voando, atravessar cada minuto sem sentir; e enquanto lia, foi o que mais me apeguei, o que me fez cair em pranto.
É doloroso porque diferentemente de uma ficção em que pegamos um personagem para chamarmos de “meu”, para defender com unhas e dentes, se revoltar se a autora faz algo que não concordamos com eles e celebrar quando eles vencem na história; eu nada podia fazer sobre nenhuma das pessoas citadas em “EnvelheSer”. Eles são obras de um Ser bem maior, e seus destinos e vivências foram escritos muito antes de eu sequer poder sonhar em escrever, ou em Jarins desejar registrar seus passados.
A condução da narrativa é rápida, porém emblemática. São idosos em um lar em Sorocaba, a maioria não dispunha de diários, fotos ou outros tesouros para pintar no livro; na verdade, eles possuíam somente sua memória e a escolha de se abrirem ou não sobre elas, e como fico feliz por eles contarem.
Envelhecer me parece assustador por vezes, para além de rugas ou cabelos brancos, quanto mais penso sobre o futuro, mais encontro-me em uma rua sem saída com infinitas passagens secretas que me levam para mundos distintos; o que me é apavorante. Quiçá isso seja uma consequência do vício da carne em controlar, somos humanos porque queremos saber de tudo, queremos ser racionais e estarmos certos, no entanto, quando se trata da vida e o que ela aprontará para nós, o que podemos saber? Um dia você está aqui e no outro não está mais, um dia você quer isso e no outro você está sonhando com aquilo. É enlouquecedor.
Quando lemos sobre as vivências dos idosos do Lar São Vicente de Paula de Sorocaba, não nos deparamos com vidas “ousadas” com grandes aventuras e descobertas no espaço, ou poderes mágicos e lutas com gigantes. Entretanto, nos debruçamos sobre pessoas corajosas, que viveram simplesmente com o que a vida podia os oferecer, e sorriram para isso – mesmo os mais sofridos, mesmo os que perderam grandes histórias de amor, que viram seus amigos e familiares partirem, que tiveram de deixar suas casas ou, é claro, os que continuam a trabalhar, que podem rir com seus netos, que podem lembrar da infância e contar que foi feliz, e ainda é feliz.
Creio ser este o verdadeiro encanto de envelhecer. Afinal, nós continuamos sendo, continuamos existindo nesta Terra, ainda que nossos ossos se decomponham em baixo do solo, ainda que séculos passem, nossos corações tocaram almas de outras pessoas, e essas pessoas criaram memórias que desenvolveram consequências que afetarão outras pessoas – mesmo que talvez, quando ainda respirávamos, quando ainda chorávamos desesperado, quando nossos olhos ainda brilhavam em inocência, não soubéssemos realmente onde pisávamos.
Beatriz quis contar os saberes daqueles que vieram antes de nós, pensamentos e ensinamentos que ecoam pelos ventos, como as folhas daquela árvore perene que passo diariamente todas as manhãs e tardes. Seus fólios fatigados, ao contrário da eternidade dos galhos, esparramam e se vão dançando pela brisa, mas ainda que não possuam falas como os protagonistas da história, eu sei que ao pousarem na calçada, as suas vidas transpassam a efemeridade alvoraçando o imo de todos – tão serenas, tão piedosas, aparentando quase invisíveis, tão invisíveis, que são elas quem dão à luz e fazem florescer toda a existência.
Seu Inácio pediu “Quero que tire uma foto minha sorrindo”. E eu desejo que todos possamos enfrentar o amadurecimento do mesmo modo, sorrindo diante dos enfrentamentos das nossas próprias vidas; afinal, eles também já estavam escritos e, pelas graças e dificuldades, chegaremos lá, seja onde for que seja “lá”.
Onde acessar e ler
O livro-reportagem EnvelheSer está disponível, em versão digital, gratuitamente no link: https://beatrizjarins.com/envelheser?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAadRJtQxCcNiJ-eInA0_alaM4uzIQ1CC3wub9f0x5z1B2Jkz2K049_NTPsfU4g_aem_N6H-wMsmIZywT-oJxoJOyQ
Outras informações sobre a produção podem ser acessadas no perfil do Instagram: https://www.instagram.com/livroenvelheser/











