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A ascensão das bets: como lidar com consequências inevitáveis?

Especialistas trazem um dado assustador: mais de 3 bilhões do bolsa família vão parar em casas de aposta

Giovanni Guimarães Brigato (Agência Focas – Jornalismo Uniso)

“É um escape do tédio, do serviço. Dá aquela adrenalina, um frio na barriga gostoso.”

A primeira vez que Juliano Lopes, revisor de fábrica de 22 anos, apostou foi em 2019, na conta do próprio irmão, já que ainda era menor de idade. No começo, jogava apenas alguns centavos, o que tornava as partidas mais interessantes de acompanhar e dar palpites — ainda mais para alguém que sempre gostou de esportes, como tênis e futebol.

Um dos melhores momentos, segundo Lopes, foi quando ele já apostava há mais de um ano e ganhou seus primeiros mil reais jogando apenas cem, em dez jogos de tênis. O revisor conseguiu obter um lucro muito bom, e isso fez com que, a partir dali, apostasse valores mais altos do que estava acostumado. “Chegou um momento em que ganhar mil reais, para mim, era como não ganhar nada”, afirma.

“Ansiedade e nervosismo” são os sentimentos que Lopes descreve a partir do momento em que aposta um valor considerado alto por ele mesmo. Mas qual seria esse valor? Hoje em dia, acima de 500 reais. Como uma pessoa que começou apostando centavos, atualmente não se importa em colocar tanto dinheiro em jogo? A resposta, segundo a psicologia, é que, como toda droga, para continuar sentindo prazer, a dose deve ser aumentada.

Ao ser perguntado como se sente quando ganha um dinheiro considerável, Lopes diz que é um alívio por não ter perdido e poder continuar apostando, afinal, é um passatempo. Ele recebe um salário de cerca de R$ 1.800,00 e coloca quase tudo no jogo. “A maioria dos meus amigos começou a apostar por minha causa, porque viu o quanto de dinheiro eu ganhava. Alguns se deram bem, outros pararam. Eles me apoiam porque acreditam que um dia eu vou recuperar o que já perdi”, afirma o revisor.

Lopes diz que o sentimento de perder um valor considerável varia de acordo com as contas que tem para pagar. Por exemplo, quando perdeu R$ 60.000 em apenas seis horas, só foi sentir uma espécie de angústia dois dias depois — mas não pelo dinheiro perdido, e sim pela vontade de continuar apostando.

Porém, com as contas chegando todos os meses, já passou dificuldades e até pegou dinheiro emprestado com agiotas. “O pior momento foi quando eu fiquei devendo para um agiota que era tranquilo, já havia pegado dinheiro outras vezes com ele antes. Mas, quando recebi meu salário, em vez de pagá-lo, apostei tudo e perdi. Aí tive que pedir ajuda para amigos, falar a verdade para a família, reconhecer que estava errado. É uma sensação de impotência”, descreve.

Lopes avalia a publicidade de casas de apostas como “corrosiva” e “desnecessária”. Afinal, os apostadores já sabem onde ir para jogar. Ele diz que ela só serve para gerar mais dinheiro e novos jogadores, que podem se tornar viciados.

As bets estão substituindo os antigos cassinos. Dados recentes indicam que o setor expandiu em torno de 734% desde 2021, revelando o interesse crescente dos brasileiros por apostas online | Reprodução: Pexels

Quando o lazer vira dependência

O vício em apostas se encaixa mais na questão comportamental. É tão prejudicial quanto a dependência química. Existem pessoas que já são inclinadas ao vício, perderam tudo, venderam seus pertences, pertences de parentes, tiraram a própria vida, pegaram dinheiro emprestado com agiotas para continuar apostando, sempre com aquele pensamento de “agora vai, agora vou conseguir”. O algoritmo dos jogos é feito para manter a pessoa nessa esperança de ganhar.

“O algoritmo é pensado para prender o jogador, reforçando a ideia de que a vitória pode estar na próxima tentativa”, afirma Pedro Marcos Bacaro, 23 anos, estudante de Psicologia.

O perfil mais vulnerável ao vício em apostas costuma ser de jovens e pessoas de baixa renda. No caso dos jovens, a explicação é biológica: o córtex pré-frontal — região do cérebro responsável pela racionalização, pelo controle dos impulsos e pela avaliação das consequências — ainda não está totalmente formado. É ele que nos faz pensar duas vezes diante de uma obrigação que não queremos cumprir ou, ao contrário, quando sabemos que deveríamos parar com um hábito prejudicial, mas insistimos em continuar.

“Quando somos jovens adultos, tendemos a nos preocupar demasiadamente com a opinião do nosso ciclo. Muitas vezes, os outros estão jogando e, por um sentimento de pertencimento — algo que o jovem procura muito — a pessoa acaba sendo influenciada”, explica Bacaro.

Já a pessoa de renda baixa inicia com a esperança de ganhar mais dinheiro e mudar de vida, partindo do pressuposto de que não tem muito a perder.


O cérebro em conflito

Por que tantas pessoas sabem que devem parar, mas não conseguem? A explicação está no funcionamento do cérebro. A região responsável por avaliar consequências é o córtex pré-frontal — ele reconhece que algo precisa ser feito. Já o estriado, localizado em uma área mais interna, é quem automatiza os comportamentos. Ou seja, enquanto uma parte do cérebro “sabe” que é hora de parar, outra continua a impulsionar a ação, criando o conflito típico da compulsão.

“Do ponto de vista neurológico, hábitos e vícios são a mesma coisa: um comportamento automatizado. Nosso cérebro é programado para repetir padrões que tragam algum tipo de recompensa”, comenta o estudante.

Neurologicamente falando, hábitos e vícios são a mesma coisa: um comportamento automatizado, algo que nosso cérebro faz o tempo todo. Nosso cérebro é muito caro energeticamente — imagine se você tivesse que pensar para fazer tudo? Escovar os dentes, dirigir, comer, são coisas que fazemos praticamente no automático, sem precisar refletir muito.

O nosso cérebro está o tempo todo calculando o quanto de esforço teremos que fazer e o quão recompensador isso vai ser. Ele interpreta estímulos, mas não entende que algo é bom ou ruim do ponto de vista moral. Ele busca dopamina, serotonina e oxitocina, hormônios ligados ao relaxamento, à felicidade e à motivação.

“O que é mais fácil: cozinhar ou pedir comida pelo aplicativo? O que é mais envolvente: ver um filme ou passar horas no Instagram? Nosso cérebro sempre vai escolher o que traz recompensa imediata”, destaca Bacaro.

O reforço intermitente é um princípio da psicologia comportamental, criado por B.F. Skinner, que descreve um esquema de recompensa em que o reforço ocorre apenas algumas vezes após um comportamento, e não em todas as suas ocorrências, como no reforço contínuo. Esse padrão de recompensa imprevisível é extremamente poderoso, aumentando a persistência e a frequência de um comportamento.


Caminhos de tratamento

As abordagens são TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental) e Análise do Comportamento, através do manejo de contingências. Há uma remissão de sintomas, como acontece com uma pessoa com depressão: com tratamento, a tendência é que sejam menos recorrentes. É difícil definir quando a pessoa está curada, afinal, ela pode ter recaídas. Mas sim, existe chance de parar, assim como em todos os tipos de vício. O indivíduo vai tendo mudanças na forma de se comportar, pensar, no ambiente e no convívio social. E, em caso de recaída, existe toda uma prevenção elaborada na clínica para esses casos.

“O tratamento não é sobre uma cura milagrosa, mas sobre um processo de mudança gradual. Mesmo com recaídas, há estratégias para lidar com elas”, afirma o estudante.

O papel da família é fundamental. O SUS não está preparado e acaba aceitando, muitas vezes, tratamentos que não têm eficácia comprovada, o que é um problema grave no Brasil — como práticas pseudocientíficas, por exemplo, a aromaterapia.

O crescimento das casas de aposta intensificou muito a busca por tratamento. Percebe-se que é algo bem predatório, através de propagandas na internet e influenciadores digitais, com os quais as pessoas criam afinidade.


Por que é tão fácil viciar?

Tanto para iniciar um hábito quanto para parar com ele, é preciso tornar isso mais fácil ou mais difícil. Por exemplo: se eu quero beber mais água, andar com uma garrafinha não mudará a rotina da noite para o dia, mas a probabilidade de tomar mais água vai aumentar, e, aos poucos, o comportamento se automatiza.

Ou, se eu quero parar de comer doce, devo diminuir a probabilidade. Se há uma tigela de doces na sua casa, você deve tirá-la. Mesmo podendo comprar em qualquer lugar, o esforço será maior, o que aumenta a probabilidade de parar com o hábito.

Nós fazemos esse manejo de contingências, alterando o ambiente do indivíduo, dificultando ao máximo aquilo que precisa ser evitado e facilitando aquilo que precisa ser estimulado.

“Por isso é tão simples viciar em apostas online: basta fazer um Pix e começar. É muito mais fácil do que se expor para conseguir drogas, por exemplo”, compara Bacaro.

Existem três coisas que influenciam nosso comportamento: filogênese (nossa genética), ontogênese (nossa história de vida) e cultura (nosso meio social, família, amigos). Com base nisso e no nosso cotidiano, essas três forças se misturam e se desdobram em inúmeros casos.

O Brasil já foi referência mundial em campanhas antitabagismo, e especialistas acreditam que medidas semelhantes podem inspirar a regulação do mercado de apostas esportivas. A restrição de propagandas e a exigência de alertas sobre riscos seriam os primeiros passos para conter o avanço do vício em jogos.

“Dentro das plataformas deveriam existir evidências claras sobre os riscos das apostas”, defende Felipe Massaharu, 21 anos, Líder de Atendimento no Instituto do Bem Estar Sorocaba e Estagiário Eurekka.

Apesar da esperança em mudanças, Felipe vê o cenário com pessimismo. “Gostaria de pensar que o que estamos vivendo é temporário, mas quando olhamos para o mercado e para o mundo, vemos o oposto. Gosto muito de futebol, acompanho os campeonatos, e apenas dois times não têm patrocínio de casas de apostas. É um império tão grande que não sei se mudará tão rápido. Mesmo que seja temporário, aparentemente vai demorar muito.”

O atendimento psicológico, segundo ele, é um caminho essencial. “Quando a pessoa passa no psicólogo, encontra um ambiente acolhedor e sigiloso, algo que talvez não tenha em um postinho ou até mesmo em uma consulta com psiquiatra. A partir do psicólogo, em alguns casos, há a indicação de intervenção medicamentosa, passando então pelo psiquiatra.” Os medicamentos mais usados nesses casos, explica, são antidepressivos (para ansiedade) e estabilizadores de humor (para controlar impulsos).

Além do tratamento clínico, grupos de apoio como o Jogadores Anônimos (J.A.) também são fundamentais. “A pessoa deve buscar todo tipo de ajuda possível”, afirma.

Felipe lembra ainda que existem critérios específicos para o diagnóstico de ludopatia, entre eles o valor das apostas realizadas. Ele destaca um dado alarmante: “Cerca de 3 bilhões do Bolsa Família foram destinados para casas de apostas. Isso mostra o quanto esse mercado está explorando pessoas em situação de vulnerabilidade. É um jogo feito para explorar os pobres. Chamar isso de diversão, para mim, é um problema.”

A comparação com dependência química é inevitável. “É sim comparável, mas de forma indireta. Não há consumo de substância química, mas no cérebro existe uma reação extremamente viciante: a liberação da dopamina. Envolve risco e expectativa de ganho. Se eu acreditar que apostar cem vai me dar uma recompensa maior do que apostar dez, eu vou apostar cem, porque fui convencido disso. Uma vez eu ganhei, mesmo que tenha sido há muito tempo, e isso alimenta a busca pela recuperação desse ganho.”

O ambiente social também pode agravar o problema. “Acredito que o comportamento dos amigos de Lopes é nocivo. Eles são o ponto fora da curva, a exceção. Ele é só mais um entre vários. A partir do momento em que reconhece que está em vulnerabilidade e os amigos incentivam a continuar… eles poderiam ter perdido tudo também. No fundo, sabemos que os amigos só querem ajudar de alguma forma. Mas a linha entre ajudar e atrapalhar é muito tênue.”

Levantamento do Datafolha revela que 15% dos brasileiros dizem apostar ou já ter feito apostas esportivas on-line, nas chamadas bets | Reprodução: Jovem Pan

Para ele, o apoio da rede mais próxima é decisivo. “A família e os amigos devem apoiar o apostador, mas ao mesmo tempo condenar a aposta. Precisam ser acolhedores, mas firmes.”

Link do grupo de apoio: https://jogadoresanonimos.com.br/

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