Jornalismojornalismo onlineSorocabaUniso

Quando a ciência tem voz de mulher: a trajetória de Érica Nunes

Série “mulheres na ciência”

Por Gabriela Vasconcelos, Giuliana Ribeiro e Kauã Rocha (Focas na Ciência e Agência Focas – Jornalismo Uniso)

Gabriela Vasconcelos (à esquerda), Giuliana Ribeiro (ao centro), Kauã Rocha, Érica Nunes e sua filha Ana Júlia – Foto: Arquivo pessoal

Por trás das publicações acadêmicas e dos gráficos meticulosos, há também ciência feita de madrugada, entre terapias infantis e cadernos de anotações. Uma ciência que se costura no cotidiano e rompe com o ordinário. Érica Nunes, educadora e pesquisadora, é uma dessas mulheres que não esperaram autorização para pertencer à ciência: ela entrou com os dois pés e um coração inquieto.

Na penumbra acolhedora de uma sala de rádio universitária, nós, estudantes de Jornalismo, escutamos. Escutar é diferente de ouvir. Escutar exige presença — e Érica Nunes é pura presença.

Não há microfones ligados, mas cada palavra dela soa como se atravessasse ondas de uma frequência mais densa: a da experiência. Ela fala com as mãos, com os olhos, com silêncios entre as frases. Pesquisadora, mulher, mãe, professora, mãeprofessora. Aqui, ela é verbo: ela pesquisa, ela ensina, ela rompe.

Érica chegou sem jaleco, mas com um currículo de vivências e um olhar afiado sobre o que significa fazer pesquisa no Brasil — e ser mulher nesse processo. Professora da rede municipal de Sorocaba, mestre em Educação e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Uniso, mãe de Ana Júlia, de 16 anos, e Luiz Augusto, de 12 anos — ambos dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA) — ela fala com a fluidez de quem já transformou sua trajetória em método científico. Não por heroísmo ou por vocação, mas por convicção. “A palavra ‘cotidiano’ é o que vem me motivando até hoje”, disse logo nos primeiros minutos. E esse cotidiano não é obstáculo. É matéria-prima.

Em sua trajetória, pesquisa e vida não se separam. Érica foi introduzida à investigação científica ainda na graduação, estudando acessibilidade arquitetônica nas escolas. Mas foi na convivência com os filhos que a prática se aprofundou. Ela não romantiza essa experiência, tampouco a apresenta como sacrifício. Ao contrário: transforma cada gesto em ferramenta de observação, cada adaptação em metodologia. “Eu tive que produzir ciência dentro da minha própria casa”, afirmou com tranquilidade. Uma ciência que se constrói no ritmo do tempo real, da escuta sensível, das pequenas soluções que surgem da necessidade e se organizam como conhecimento.

Durante o mestrado, Érica escolheu a autoetnografia como método. Fez da própria trajetória campo de análise, articulando seu lugar como educadora e como mãe — mas sem hierarquias entre essas identidades. Ela propôs o termo mãeprofessora como síntese de uma experiência que não se divide, que atravessa. “Foi uma questão de organização. Fiz a pesquisa de madrugada”, contou. Não como drama, mas como escolha possível dentro de uma estrutura que, muitas vezes, ainda falha em oferecer suporte real às mulheres na academia.

Os filhos, Ana Júlia e Luiz Augusto, são parte ativa do processo que gerou artefatos pedagógicos, reformulações de sala de aula e novas estratégias para tornar o ensino de fato acessível. Érica não impôs um modelo de aprendizagem à filha — adaptou os meios para que ela se expressasse como é. Criou livros de feltro, jogos com velcro, repensou o uso do lápis e do papel. “Quando a Ana escrevia, ela não sabia utilizar o lápis. Então, nós fizemos materiais com velcro. Ela usava para fazer pareamento de letras, identificar letras iniciais”, afirmou.

Tudo isso não se deu por instinto ou improviso: foi pesquisa sistemática, embasada, conectada com uma pedagogia da diferença e com a filosofia da presença, como ela nomeia. Para Érica, ensinar é reconhecer a existência do outro em sua inteireza. “Não é simplesmente estar na escola e ensinar, mas é o quanto essa presença rompe com o cotidiano que as pessoas levam diariamente como uma certeza.”

Ao longo da conversa, ela voltou à importância da coletividade — da formação de redes de apoio, de políticas públicas efetivas, da atuação docente mais consciente e menos técnica. Sem apontar culpados, ela propôs caminhos: reconfiguração das salas, formação contínua de professores, construção de materiais diversos. Não para responder a um único perfil de aluno, mas para reconhecer a pluralidade de modos de aprender.

Sua crítica à falsa ideia de inclusão — aquela que se esgota na matrícula — não veio com denúncia vazia, mas com proposição concreta. “A palavra ‘inclusão’ é utilizada, mas muitas vezes só para garantir o direito legal de estar na escola. Isso não garante permanência nem aprendizagem.” Para ela, incluir é transformar estruturas, não ajustar o sujeito a um sistema imutável.

A mãeprofessora também falou da ciência em seu sentido pleno: pesquisa como prática transformadora, como extensão do pensamento crítico, como ferramenta de acesso coletivo ao saber. E reforçou que esse trabalho não pertence a um ideal de cientista isolado, de jaleco branco e tubos de ensaio. “Precisamos tirar esse cinema de que ciência é só para quem está num laboratório. Às vezes ela acontece em casa, na escola, na rua, nos hospitais, nos espaços mais esquisitos e cotidianos possíveis.”

Érica Nunes deixou uma mensagem que ecoou forte: “A ciência precisa acontecer. As coisas mudam. Nós vamos pesquisar outras coisas, motivadas por outras pesquisas. A ciência gira.” E com ela giram mundos antes paralisados pela ignorância, pelo preconceito, pela inércia institucional.

E se a ciência gira, como ela diz, é porque é movida por perguntas. E as perguntas que Érica levanta partem do real: como ensinar quando o corpo aprende de outra forma? Como tornar o conhecimento tangível a quem foi historicamente afastado dele? Como fazer da educação um espaço de pertencimento, e não de adequação?

Não há lamento em sua fala. Há rigor. Há política. Há afeto como ferramenta pedagógica. Há consciência do lugar que ocupa e da responsabilidade de ampliar esse espaço para outras mulheres, outros pesquisadores, outras famílias.

No final da conversa, quando já eram quase 20h40 da noite, colocando os dois braços lado a lado, Érica nos mostrou suas tatuagens. É a primeira palavra escrita por Ana Júlia, prometida como símbolo do aprendizado conquistado — não por milagre, nem por imposição, mas por continuidade. “Eu prometi que, quando ela escrevesse, eu tatuaria. E tá aqui.”

Foto: Giuliana Ribeiro

Nós, estudantes, ouvimos em silêncio. Não saímos com respostas prontas, mas com perguntas melhores.

Porque talvez essa seja a marca mais forte de Érica Nunes: ela pesquisa não para resolver, mas para abrir. Sua trajetória não oferece modelos a seguir, mas critérios para pensar. E, sobretudo, afirma uma ideia urgente: a ciência não está distante — ela mora onde há prática, onde há vínculo, onde há escuta.

E, naquela noite, estava ali: sentada numa cadeira qualquer, numa sala qualquer, dizendo com palavras inteiras que ninguém precisa pedir licença para pensar o mundo.

Material produzido na disciplina “Agência Universitária de Notícias sobre Ciência, Tecnologia e Inovação”, sob orientação da professora Mônica Ribeiro Gomes.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *