Ancestralidade Jornalística
Ancestralidade. Para o Aurélio ela é uma “particularidade ou estado do que é ancestral (que se refere aos antepassados ou antecessores)” ou “o que se recebeu das gerações anteriores; hereditariedade”. O Michaelis fala que ela é “qualidade de ancestral”; “legado de antepassados” a “linha das gerações anteriores de um indivíduo ou de uma família; proveniência de um povo”. Já o Priberam acredita que ela é uma “transmissão de qualidades ou características dos ascendentes aos descendentes”.
Eu costumo falar, de uma maneira bem resumida obviamente, que “ancestral para mim é tudo aquilo que existe neste mundo antes de eu conhecê-lo. Qualquer ser humano que veio antes de mim, eu considero como um ancestral, pois ele tem mais tempo de vida do que eu, viu e aprendeu muitas coisas antes de eu chegar aqui”. Falei essa frase esses dias em um bate papo sobre jornalismo em uma escola pública de nossa cidade.
Por mais que uma ferramenta de busca em um navegador de internet me responda que “ancestralidade jornalística se refere à maneira como o jornalismo reconhece, investiga e relata histórias e saberes ancestrais”, e o conceito possa até existir com esse significado — eu optei por não pesquisar, pois não gostaria que influenciasse minha escrita — não é esse o ponto que me refiro hoje. Ancestralidade Jornalística que falo é o respeito e a lembrança em relação àqueles que abriram as estradas jornalísticas para que outros pudessem estar caminhando nela hoje.
Você se lembra do primeiro jornalista que ouviu no rádio ou visualizou na televisão? Que lembranças o nome dela(e) te traz? Já parou para pesquisar a idade que esse profissional tinha na época, por onde ele passou ou quais digitais ancestrais ele deixou? Que tal fazer esse exercício? Bora lá, tenho certeza de que você vai encontrar coisas que nunca imaginou.
No bate papo que tive com o pessoal do ensino médio foquei no jornalismo policial pois a professora havia me alertado que eles gostavam muito. Fiz um breve histórico falando sobre as notícias dos crimes da mala no início do século passado. Fui caminhando até os anos 1960 para falar de Jacinto Figueira Júnior, O Homem do Sapato Branco que em livro homônimo é chamado de “o inventor do mundo cão na televisão brasileira”. Mostrei que foi ele o profissional que abriu as portas para um formato de jornalismo que deu origem a outros programas, como O Povo na TV, Aqui Agora, Cidade Alerta, Balanço Geral, entre outros.
Fiz questão de mostrar que o jornalismo policial não era só feito por figuras midiáticas como Datena, Marcelo Rezende — causei espanto na molecada ao mostrar que eles foram repórteres esportivos, literalmente de campo, antes de contarem histórias de crimes na televisão — Luiz Bacci, Reinaldo Gottino, Jorge Lordello e outros. Comentei que o Percival de Souza não era só “um tiozinho que comentava”, mas um cara que já estava no ramo há muitos anos. Mostrei também que Caco Barcellos não era somente do Profissão Repórter e que foi ameaçado de morte no lançamento de seu livro Rota 66.
Indo para o lado do rádio, trouxe a eles uma figura mitológica e desconhecida: Gil Gomes — foi nítido e emocionante ver os olhos das duas professoras que estavam na sala brilharem ao recordarem de memórias telerádioafetivas que estavam apagadas. Segundo o pesquisador da USP Bruno Paes Manso, no rádio do início da década de 1970, “Gil Gomes inventaria um jeito próprio de apimentar os crimes mais dramáticos, com sua voz de Conde Drácula e músicas de terror ao fundo”. Como eu tinha medo da voz desse homem! Na televisão nem tanto, mas no rádio era surreal. Perca uns minutinhos da sua vida procurando os vídeos dele no YouTube, confesso que também vale muito a pena.
Lembrei-me da figura enigmática de Afanásio Jazadji. Depois que se enveredou pela política acho que se perdeu um pouco, mas seu jeito de tratar os policiais como “deuses”, esquecendo de outros atores da produção de informações é replicado até hoje. Após falar de outro grande ídolo, Roberto Cabrini com suas perguntas contundentes e seus “achados” como o paradeiro do falecido empresário PC Farias, fui para um caminho de alerta: “nem tudo é lindo no Jornalismo Policial!”.
Com esse título abri uma outra etapa da minha fala. Apresentei a eles o triste caso de Tim Lopes. A dramática história do Bar Bodega, trazida por Carlos Dorneles em livro homônimo e falei de Valmir Salaro e um dos maiores erros do jornalismo nacional: o caso Escola Base. Utilizei esses casos para reforçar que a nossa palavra enquanto jornalista pode ter bons e maus resultados, e que é preciso ter responsabilidade jornalística não somente no policial, mas em todas as áreas.
E as mulheres e os negros? Fiz essa pergunta aos jovens no dia e repito agora para você que me lê. Desde que você começou a ler, até agora, quantas personalidades negras e mulheres do jornalismo policial eu citei? Há algo para se incomodar, não?
Mostrei para eles, que apesar de já ter existido um programa policial de grande sucesso com uma apresentadora mulher, ela era padrão, ou seja, loira, branca e de olhos claros. Me refiro a Cristina Rocha — sim, aquela mesma do Caso de Família — à frente do programa Aqui Agora.
Sabe aquela repórter loira que aparece no programa do Ratinho, naqueles quadros de reencontro de irmãos que não se viam há 30 ou 40 anos, ou o famoso “De volta para minha terra”? Então ela também foi repórter de rua cobrindo notícias policiais no Aqui Agora. E apesar de ser a responsável por formular todo o jornalismo da então novata no ramo televisivo SBT, Magdalena Bonfiglioli é lembrada como? “A repórter chorona”. Lastimável.
Isso me fez lembrar de uma fala da professora Monica Martinez que li na matéria “Estudos em jornalismo literário conduzidos no Brasil devem considerar questões de gênero” na edição 14 da Revista Uniso Ciências. Apesar de o tema ser diferente do aqui exposto, acredito ser bem pertinente:
“A história do jornalismo literário no Brasil vem sendo narrada predominantemente por vozes masculinas, o que sugere desigualdade e um possível viés de gênero. Há evidências substanciais de que as mulheres tiveram uma presença importante no jornalismo brasileiro do século XIX. Elas escreviam para jornais e revistas e pertenciam a diversos campos do conhecimento, classes sociais e regiões. “No entanto, ignoradas por historiografias jornalísticas e literárias, a maioria dessas pioneiras — especialmente as revolucionárias que lutavam pelos direitos das mulheres — foram condenadas ao esquecimento.”
E não pude deixar de citar também a figura de Fátima Souza. Seu tipo físico e seus cabelos brancos ajudaram no pré-conceito formulado pelos alunos. Todos ficaram de boca aberta quando eu disse que aquela “senhorinha” que aparecia nos slides foi quem cobriu e indiretamente contribuiu na caçada ao Maníaco do Parque no fim dos anos 1990 e também foi a primeira pessoa a perceber, investigar e denunciar o nascimento do PCC.
Encerrei dizendo a eles que não existe um “manual” sobre como ser jornalista policial — exceto para se noticiar situações envolvendo suicídio — é preciso seguir seus instintos e saber principalmente ouvir e checar antes de se contar uma boa história. Que a vida jornalística não é tão glamorosa como vemos nas séries e filmes por aí. E que o jornalismo não é feito somente do policial, esportivo, político, econômico entre outros, sendo necessário levarmos informação para todos, entendendo as particularidades das chamadas “minorias” e ampliando vozes como o que é feito no jornalismo das periferias, muito bem trazido pela professora Mara Rovida, no livro Jornalismo das periferias: o diálogo social solidário nas bordas urbanas e na Folkcomunicação – A comunicação dos marginalizados, de Luiz Beltrão.
Não basta ser jornalista, precisamos cada vez lembrar-nos e fazer ser lembrada a nossa ancestralidade jornalística. Valorizando os Griôs da notícia e os “Exus de microfone na mão”, que abriram e ainda abrem — e também protegem — os caminhos da comunicação para nós passarmos.
Leia mais:
Artigo “De Gil Gomes ao True Crime, uma breve história do jornalismo policial”. https://jornal.usp.br/articulistas/bruno-paes-manso/de-gil-gomes-ao-true-crime-uma-breve-historia-do-jornalismo-policial/
Matéria “Estudos em jornalismo literário conduzidos no Brasil devem considerar questões de gênero”. https://uniso.br/unisociencia/r14/jornalismo-literario-genero.pdf
