As feridas causadas na infância podem durar para sempre
Especialistas alertam para os prejuízos que o preconceito pode causar na formação emocional e social das crianças na fase mais importante do seu desenvolvimento, a primeira infância
Por Rafaela Sallum (Agência Focas – Jornalismo Uniso)

Foto: Espetáculo Carolinas

Foto: Arquivo MeetCom
O “Mês da Primeira Infância” ou “Agosto Verde”, estabelecido pela Lei Federal nº 14.617/23, é dedicado à valorização, proteção e promoção dos direitos das crianças de zero a seis anos no Brasil. O principal objetivo é conscientizar a população sobre a importância de uma infância protegida e sobre como essa fase da vida afeta o desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e socioemocional das pessoas.
Segundo estudos da Unicef Brasil e do Centro Infantil de Desenvolvimento da Universidade de Harvard, o racismo estrutural afeta as pessoas desde o nascimento, interferindo na saúde e no desempenho educacional de crianças negras e indígenas. O professor da rede pública de ensino e escritor Manoel Francisco Filho, 45 anos, concorda com os resultados das pesquisas e confirma essa percepção a partir de sua experiência profissional e também pessoal. Ele conta que começou a escrever livros infantis por conta da sua filha, pois sentia dificuldade em achar bonecas com o mesmo tom de pele dela. Para o escritor, a literatura possibilita que a criança viva a infância sem os limites impostos pelo racismo. “A perspectiva é ressignificar a possibilidade de uma infância que permita a negritude em toda sua potencialidade, independente da cor da pele.”
A infância é um período fundamental para a formação da identidade, da autoestima e do senso de pertencimento de uma pessoa. Os acontecimentos registrados na primeira infância influenciam diretamente na vida adulta, sejam traumas físicos, psicológicos ou emocionais. Para a psicanalista Maria Tereza Ferreira, 45 anos, que também é escritora, o racismo estrutural cria um ambiente onde as crianças negras muitas vezes são percebidas como inferiores, o que impacta diretamente na sua autoestima. Isso pode levar a um sentimento de inadequação e de não pertencimento, limitando sua capacidade de sonhar e de se projetar no futuro com potencial ilimitado. Por isso, a literatura infantil assume um papel tão fundamental na construção da identidade da criança, ainda mais em um país miscigenado como o Brasil em que, embora a maioria da população seja negra – pretos e pardos, de acordo com a classificação do IBGE -, os padrões valorizados são aqueles relacionados ao universo europeu, branco. Assim, por meio da literatura é possível apresentar outras perspectivas e incentivar caminhos diversos para alimentar a imaginação das crianças, não se limitando, por exemplo, a uma ideia de África mítica, mas explorando a riqueza e a diversidade do continente africano.
A importância do brincar
O “brincar” é visto muitas vezes como um ato de lazer e acaba não recebendo a devida importância que tem. Por meio de brincadeiras, as crianças desenvolvem a coordenação motora, estimulada em atividades como correr, pular corda e jogar bola; a socialização, incentivada com tarefas em grupos; e a formação emocional, acionada pela imaginação da criança em jogos de “faz de conta” que ensinam os pequenos a lidar com seus sentimentos, incluindo a frustração. Para a estudante do último semestre do curso de Terapia Ocupacional (TO), Rafaela Assaf Rivera, 21 anos, as brincadeiras realizadas durante o atendimento em seus estágios de TO são de suma importância. “O brincar é a principal ocupação da criança, porque é a atividade mais significativa nesse período. Por meio das brincadeiras, a criança explora o mundo, experimenta papéis, descobre suas habilidades e expressa emoções.”
As brincadeiras dão autonomia para as crianças, pois elas aprendem a tomar decisões, resolver problemas e experimentar novas possibilidades. O professor e escritor Francisco Filho concorda que “o brincar desvenda possibilidades, potencialidades que possibilitam vivências para além da experiência de um corpo, seja ele negro ou não. Quando uma criança tem a possibilidade de experienciar a diversidade ela se reconhece no outro, cria laços empáticos e afetuosos se livrando das construções imagéticas racistas.”
O direito ao brincar é previsto por lei e é considerado um dever do Estado, da família e da sociedade, sendo essencial para o crescimento de todas as crianças. Durante o brincar, as crianças podem reproduzir atitudes do cotidiano e, para a estudante de TO Rafaela, quando surgem situações de preconceito ou atitudes racistas, é necessário investigar de onde a criança está trazendo isso. Muitas vezes as crianças repetem uma fala sem entender seu real significado. “Nesses momentos, é fundamental manter a calma, se a criança se assustar com a reação do adulto, pode não conseguir explicar onde ouviu a fala. Dessa forma, ela talvez nunca mais repita a frase, mas também não entenderá o motivo porque não deve repetir.”

Foto: arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal, Rafaela Assaf Rivera
A importância da representatividade durante a infância
A lei 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas e contribui para uma formação mais inclusiva e que combate o preconceito racial. Por isso, as escolas precisam de materiais didáticos adequados e de professores capacitados para desenvolver atividades que promovam a diversidade racial. A psicanalista Maria Tereza Ferreira ressalta a importância da legislação que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). “Essa lei [10.639/2003] garante que as crianças negras tenham acesso a referências positivas, conectando-se com a sua própria história e com a contribuição de personalidades negras para a construção do Brasil. A promoção da diversidade cultural é um passo vital para combater o preconceito e reforçar o respeito às diferenças.”

Para que a diversidade e equidade racial deixem de ser promessas e se tornem ações e práticas pedagógicas, Maria Tereza defende que educadores e outros profissionais da educação passem por letramento racial. Além disso, ela defende que sejam criadas bibliotecas com ênfase na literatura infantil negra e que haja uma garantia de que os livros representem a diversidade racial do Brasil. Essas ações são fundamentais para garantir, segundo Maria Teresa, uma infância mais saudável e inclusiva porque contribuem para a criação de um ambiente de respeito para todas as crianças.
A infância é a fase da vida em que se forma a autopercepção e a percepção do mundo. Quando não existem representações externas que permitam a auto identificação, um sentimento de inferioridade nas crianças pode ser criado. O jornalista Rafael Alves Sobrinho Filho, 38 anos, relembra que a sua infância foi marcada por preconceitos. Pessoas à sua volta o identificavam como o menino preto, criado pela avó, que era bolsista e que não tinha dinheiro para comprar lanche na cantina. Para Filho, o racismo impactou sua vida adulta porque ele demorou para acreditar em si mesmo, a ponto de acreditar que uma educação de qualidade, ou mesmo uma alimentação melhor e o lazer não eram para ele. “Por ser o ‘pretinho bolsista’ da minha turma, eu ouvia – e guardava na minha mente – que eu não poderia ter as mesmas profissões que meus colegas brancos da sala de aula. Me lembro de ouvir falas do tipo: ‘você não tem dinheiro nem para pagar a escola, imagina fazer uma faculdade um dia’. Era complicado porque eu não tinha em quem me espelhar, eu não tive professores negros, na maioria das profissiões de alto escalão eu só tinha referências brancas. Então quando ia ter feira de profissões na escola, eu sempre falava que queria ser jogador de futebol ou pagodeiro, pois eram os ambientes onde eu conseguia visualizar mais pessoas com tons de pele mais próximos do meu.”
Quando criança, Rafael Filho não entendia a gravidade dos episódios, ele também não recebia orientação em casa ou na escola à respeito, por isso não sabia lidar com as situações. Filho comenta que só foi entender que tinha sofrido racismo depois de adulto quando passou por letramento racial. “Entre 1994 e 1996, não me recordo exatamente. Eu tinha entre 8 e 9 anos de idade e cursava a 3ª série do ensino fundamental na Escola Rosemary de Melo Moreira Pereira, no Parque Vitória Régia, em Sorocaba. Os Mamonas Assassinas estavam no auge e eu era muito fã deles. Teve uma atividade cultural, não me recordo se era dia dos pais ou das mães ou qualquer outra data especial, mas me lembro da escola cheia de pessoas para assistir as apresentações dos alunos. Eu e algumas crianças decidimos fazer um playback dos Mamonas, eu seria o Dinho. Me lembro de ensaiar com a professora e tudo mais. No dia da apresentação, um pouco antes de subir ao palco, enquanto aguardávamos para entrar, me lembro de várias crianças e adultos perguntando o que seria a nossa apresentação e, ao explicar os detalhes, eu ouvi os comentários: ‘nossa, mas como você vai ser o Dinho se você é preto?’ ‘Nossa, esse Dinho está meio queimadinho, não?’ ‘Não tem como você ser ele, olha o seu cabelo e olha o dele’.” Rafael Filho apresentou o número ensaiado para o dia, mas depois disso nunca mais teve coragem de subir no palco da escola. Hoje, ele entende que o sentimento de rejeição que nutriu, em grande parte da sua vida, foi por causa do racismo que sofreu na infância.
O sentimento de inferioridade causado pelo racismo também afetou a autoestima do jornalista e, atualmente, colunista da Agência Focas. O cabelo era um dos motivos da sua insegurança, algo que foi alvo não apenas no episódio da apresentação da escola, mas também em outras situações. “Eu sempre tive vontade de deixá-lo crescer, mas as situações de racismo que sofri durante a infância e a adolescência me tiraram a coragem de assumir meus cachos e ter o penteado que eu quisesse. Até hoje, às vezes, me pego pensando: ‘será que não está muito bagunçado? Estou apresentável?’. Não assumir nossos cabelos e penteados afros é uma imposição social que carregamos desde a colonização. Durante a minha transição de cabelos extremamente curtos para o tamanho que tem hoje, creio que em 2023, no meu ambiente de trabalho e em sala de aula da graduação, ouvi de uma colega de trabalho e de um professor: ‘está na hora de cortar esse tucho aí, está parecendo um mendigo’.”
Por isso, ações como aquelas que dão conta da lei 10.639/2003 e como a produção de livros com personagens que permitam às crianças se sentirem representadas e reconhecidas são tão necessárias. No mês em que a primeira infância é o centro das atenções, observar a presença do racismo nessa fase da vida marca algumas iniciativas como o documentário “Mosaico das infâncias – Primeira infância também é território e identidade”, que estreou no último dia 15 no canal do YouTube da Agência Alma Preta e pode ser acessado pelo link https://www.youtube.com/watch?v=OMBVZ-KIt5Y