Caráter Mediúnico
Caráter Mediúnico
“E com aquelas poucas palavras ele formou minha vida inteira, tudo, o meu eu e quem sou. O Maravilhoso, onividente, onisciente Harry, meu pai. Isso faz tanto tempo. Harry morreu há anos. Mas as lições que me deu continuam vivas. Não por causa de qualquer sentimento meu, caloroso e grudento. Mas porque ele tinha razão. Provei isso várias vezes seguidas. Harry sabia, me aconselhou com sabedoria. Tome cuidado, ele disse. E me ensinou a tomar cuidado.”
Esse poderia ser somente um trecho do livro Dexter, a mão esquerda de Deus, —que deu origem à famosa série do “assassino de assassinos” — no qual o personagem comenta sobre a relação com seu pai Harry Morgan. Mas ele me fez recordar uma memória minha: a relação com meu PAI de Santo Natanael Vaz de Almeida, o famoso “Seu Nata”, aquele que formou meu Caráter Mediúnico.
Não sei se o conceito existe, optei por não pesquisar para não influenciar minha escrita. Mas minha relação com Seu Nata começou em maio de 2006, quando eu estava procurando um terreiro de Umbanda para desenvolver minha mediunidade. Foi amor à primeira vista entre mim e aquele grande homem negro de 1,90 m de altura. Ao pisar naquele chão, algo me disse: aqui é o seu lugar.
E esse amor não era somente pelas nossas semelhanças espirituais — nossos Orixás eram os mesmos e eu incorporo muitas entidades que ele também carregava — mas, principalmente, pela pessoa que ele era.
O mês de agosto, que acabou há poucos dias, inlcui uma data dolorida para mim, mas explica a minha relação com Seu Nata: o Dia dos Pais. Não conheci o meu pai biológico, ele faleceu quando eu tinha apenas 4 anos de idade e minha mãe faleceu no ano seguinte. Não tenho nenhuma lembrança dos dois.
E por qual motivo o trecho do livro sobre Dexter Morgan me fez lembrar do Seu Nata? Um dia, por volta dos meus 24 anos, eu estava um pouco revoltado com a vida por não ter um pai. Nessa época, Seu Nata, com seus quase 80 anos, durante um jogo de búzios, após ouvir meus lamentos, me disse: “mãe, talvez você possa não ter, mas pai você sempre vai ter um aqui, e sou eu”.
Sua passagem foi muito dolorida para mim, sofri como se realmente tivesse perdido um pai, um mentor, um mestre. Me lembro que, ao chegar em sua casa um dia e não o ver me esperando, sorrindo ou me perguntando como andava o nosso Corinthians — o cardiologista o havia proibido de assistir aos jogos de nosso time, por isso ele assistia somente os últimos 5 ou 10 minutos — senti que algo estava errado. Seus filhos, sabendo de nossa ligação, rodearam bastante para me contar que ele havia passado mal e estava internado.
Ao receber a notícia, minha espiritualidade já falou em meus ouvidos aquilo que eu jamais gostaria de ouvir, mas por conta da minha evolução espiritual oriunda dos ensinamentos de Seu Nata, assimilei: ele não vai voltar.
Fui visitá-lo. E mesmo em um leito de UTI, em uma situação bem precária, ele não deixou de demonstrar carinho com os seus: “Rafa, eu não estou muito bem, então fala com o pessoal do terreiro para cancelarmos o trabalho desse sábado. No outro já vou estar bem, aí fazemos o trabalho. Não deixe de avisar ninguém, viu!” Mesmo naquela situação ele estava preocupado para que nenhum médium ou visitante ficasse sem amparo. Que lição linda.
Para mim, foi muito difícil, pois internamente eu sabia que não teríamos mais trabalhos sob seu comando. Respirei fundo, segurei ao máximo as lágrimas, disfarcei bem para ele não perceber e respondi: “pode deixar Pai, eu cuidarei de tudo”.
Durante todo o período de 10 anos em que convivemos — ele faleceu em 2016 — Seu Nata me ensinou muito, ele formou o meu caráter mediúnico. A palavra que ele mais repetia para seus filhos de santo era: humildade. Ele dizia que “nós estamos aqui nessa Terra para servir e não ser servidos”. Outros conselhos carrego comigo até hoje: “o médium não pode ter vaidades”; “nunca deixe os elogios ao seu dom ou ao trabalho das suas entidades subir para a cabeça”; “haverá dias que você vai ter que escolher entre uma festa e o terreiro”, “nunca negue ajuda a ninguém, mesmo que seja para o seu inimigo”; “se uma mãe te ligar pedindo para benzer seu filho doente, seja onde for, a hora que for, vá, mesmo com cansaço, frio ou chovendo”, entre outras.
E “ele tinha razão. Provei isso várias vezes seguidas. [Seu Nata] sabia, me aconselhou com sabedoria. Tome cuidado, ele disse. E me ensinou a tomar cuidado.”
Em tempos de tantas variações sobre o que é ser médium; denúncias de abusos praticados por líderes religiosos; seduções financeiras por parte de pessoas que pagam qualquer valor para quem praticar o mal; “gourmetização” e embranquecimento das religiões de Matriz Africana; além de algumas aparições um tanto quanto discutíveis nas redes sociais (com Pombagira ganhando Iphone ou médiuns fazendo dancinhas de TikTok dentro do Congá), às vezes é difícil se criar um caráter mediúnico. Graças a meus pais Oxóssi e Seu Nata, eu formei o meu.
Assim como o Sr. Morgan criou o “Código de Harry”, com lições e regras para que Dexter pudesse sobreviver, Seu Nata criou uma cartilha para mim e outros de seus filhos de santo.
Se hoje sou quem sou em nível espiritual, colhendo maravilhosos frutos de meu trabalho, quando diversas pessoas me procuram para contar que alcançaram alguma graça após atendimento com minhas entidades, devo tudo a ele.
Seu Nata, um negro, um médium de caráter, um professor, um PAI.
