A televisão que você conhecia não existe mais
Transições silenciosas, streamings e um tempo que não volta mais
Fernanda Helena de Campos (Agência Focas – Jornalismo Uniso).
Toda noite, isso mesmo, especificamente a noite, as 20h30, na cama, sofá, ou até mesmo em um boteco, seja onde for, se você ligar a TV e passear pelos canais, haverá um homem com semblante sério lhe saudando, ele já é de casa. Há 29 anos, William Bonner ocupa esse horário como se fosse um vizinho que sempre aparece na porta para dar as notícias do dia.

A dinâmica desse “relacionamento” muda quando na primeira semana de setembro há o anúncio sobre sua saída prevista para novembro. Eu particularmente uso esse termo, pois apesar da distância encurtada pelo televisor, há a necessidade de explicar a saída, de avisar esse fim de ciclo, porque ele sabe que sua ausência causará um estranhamento.
Inevitavelmente, deixar a bancada traz consigo a sensação de que se encerra também outro pedaço de um tempo em que a televisão deixa de ser o centro da vida brasileira, já que outros personagens icônicos deixaram a cena também; Silvio Santos, Faustão e Galvão Bueno. Claro que em alguns casos, se trataram de renovações, tendo em vista a idade dos apresentadores e a mudança de público, já em outros, por situações mais singulares como questões de saúde e até de falecimento.
O ponto é, independente da geração (boomer, milenial e até mesmo a Z), as vozes desses figurões todo mundo já ouviu, todos conheciam ou pelo menos já ouviram falar, mas será que isso vai ser possível no futuro? Todo mundo compartilhar desse “convidado” especial que só vem pela tela da TV?
O peso simbólico de um rosto fixo tem sido menos provável em tempos que o conteúdo cabe na palma da mão, ou até mesmo no bolso. Informação… não, melhor dizendo, a hiperinformação, se reproduzindo de forma infinita, fragmentada e individualizada, sem o peso simbólico de um rosto fixo, de uma rotina. Todo mundo pode passar pela sua casa agora, obviamente de forma rápida, só uma troca de ideias, um bom dia, boa noite e vai embora.
Nesse sentido, como diria o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o que era sólido se liquefaz: o ritual de se sentar à frente da TV, a experiência compartilhada e previsível, dá lugar a uma comunicação líquida, efêmera e personalizada. As tradições desaparecem e, com elas, a sensação de um tempo comum. Tudo é projetado para ser descartável, até mesmo identidades.
Os jovens não têm paciência para o veículo?

No Brasil, dados do Grupo de Mídias de São Paulo indicam que a faixa etária entre 12 e 34 anos, que engloba também os chamados millennials e a geração Alpha, apresentou uma queda no número de espectadores da televisão tradicional, passando de 41% em 2019 para 38% em 2022, realidade essa que ecoa até no exterior. Um estudo realizado nos Estados Unidos revela que jovens de até 24 anos assistem quase sete vezes menos televisão aberta do que pessoas com 65 anos ou mais, passando menos de uma hora por dia em frente à TV.
O jovem Igor de 17 anos, estudante do ensino médio afirma que a programação da TV não é muito atrativa e o máximo que assiste é, raramente, o jornal local. “Sei lá, eu chego em casa, faço os meus afazeres e já vou pro meu celular, às vezes, eu até vejo a minha mãe assistindo, mas as novelas não chamam muito a minha atenção sabe?”
E a pergunta que não quer calar, qual é o futuro de referências comuns em meio a tudo isso? Irão existir novos “Bonners”, novos “Faustãos”? Quando perguntada sobre isso, Edsel Pamplona Diebe, 42 anos, Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria, afirma que com certeza sempre existirão figuras que dominam esse espaço da comunicação apesar de não ter o mesmo peso, afinal já foi a era em que a TV moldava comportamentos através da sua programação.
Quando perguntada sobre a existência de referências, a Edsel explica que elas já estão presentes pelos influencers. “Antigamente, você tinha uma pessoa como referencial, um especialista. E hoje em dia não tem mais, é uma pessoa que ganhou credibilidade na rede, mas dificilmente ela tem uma especialidade naquilo que ela fala. Como, por exemplo, um grande comunicador, uma comunicadora como a Hebe Camargo, que já vinha de rádio, né? De programas de rádio se tornou atriz. Então, tudo isso era uma coisa diferente. Realmente era uma coisa de peso.”
Existe um lado positivo em meio a isso?
Há quem diga que nos anos 90 a televisão era até mesmo um pouco corrosiva em questões de corpos e gênero, a disputa pela atenção da audiência era um tanto visceral. Mas se você não consegue imaginar, pense que Domingo era dia de assistir a concursos de camisetas molhadas no Domingão do Faustão, ou, se preferir algo mais intenso, havia a disputa pelo sabonete na Banheira do Gugu. Era diversão para toda família, será?
O cenário colorido e lúdico do programa da Xuxa estava repleto de músicas, desenhos e assistentes de palco que carregavam uma sensualidade que destoava da plateia infantil.
“O espetáculo não é apenas uma ferramenta da dominação, mas o próprio modo pelo qual a dominação se manifesta.”
Guy Debord — Sociedade do Espetáculo
Se antes apenas alguns corpos cabiam na tela, agora são muitos. Redes sociais abriram espaço para vozes e presenças antes silenciadas: mulheres que falam de si mesmas sem precisar de molduras, pessoas negras e indígenas reivindicando narrativas, pessoas LGBTQIA+ que encontram ali um lugar para existir sem depender do filtro das emissoras.
Mas se há mais espaço, há também novos riscos. A corrosão não desapareceu, é a velha lógica do espetáculo, como apontava Guy Debord: tudo se transforma em imagem, em mercadoria a ser consumida, até mesmo a intimidade e a dor; do ibope ao engajamento. A diferença é que, em meio a essa disputa, surgiram brechas: onde antes só cabia a caricatura, hoje pode caber a pluralidade.
Ainda somos os mesmos, e vivemos
Vamos ser francos, a televisão aberta nunca vai deixar de existir, apesar de haver todo um discurso pessimista em relação a isso: “O fim da televisão”, “O fim da Globo”, “A era do streaming”. Veículos impressos (como jornais e revistas) e até mesmo o rádio ainda persistem, a diferença é que todos eles se moldaram para uma ordem mais segmentada, nesse raciocínio não existe a possibilidade de um “fim”, o cenário até aparenta crise, a televisão apenas precisa se remodelar a futuras gerações e a forma de apresentar conteúdo.

Enquanto as especulações não se concretizam e o futuro parece apenas uma neblina densa, o que nos resta é esperar e dizer adeus ao nosso vizinho de longa data, William Bonner.