jornalismo onlineSorocabaUniso

Revistas, gibis, jornais e memórias

Juliano de Oliveira Rosa Filho (Agência Focas – Jornalismo Uniso)

Um local pequeno, enxuto, com tantas prateleiras e suportes que é até difícil saber onde direcionar o olhar. Ao redor, muitos papéis. Papéis de capa dura, papéis de capa mole, papéis bem frágeis, que depois de lidos, acabam até virando serventia para nossos pets. Papéis que contam e narram histórias. Um ambiente que onde quer que você olhe, estará visualizando algo rico em conteúdo.

            Quantas crianças não passaram por esse local toda semana, sempre pedindo para a mãe comprar o volume ou edição nova de sua revista, mangá, ou história em quadrinho favorita. Quantas pessoas não passam de quatro em quatro anos para comprar um álbum de figurinhas da tão esperada Copa do Mundo, transformando todo o seu entorno num grande ponto de trocas, fazendo com que pessoas interajam com pessoas reais, fora das telas. Quem nunca viaja no tempo quando simplesmente retira o colante de uma figura, com aquele papel macio, e insere meticulosamente no seu local indicado em uma página recheada de atletas?

            Porém, com a maravilhosa evolução da tecnologia, muitas facilidades foram adicionadas à nossas vidas. Imagino que ninguém tenha saudade de ter que se deslocar para uma lotérica e aguardar uma fila quilométrica para pagar uma simples conta de água da Sabesp. Hoje podemos fazer esse mesmo procedimento, apenas com simples toques na tela do celular, e no máximo uma passada com o dedo no sensor de impressão digital. Ao mesmo tempo que benefícios como esse vieram, nós perdemos algumas coisas no caminho, e esse hábito foi um deles.

            As crianças nascidas depois de 2015, que desde que aprendem a andar e falar já estão imersos dentro de uma tela de celular, provavelmente nunca terão a sensação de entrar numa banca de jornal e se encantar com aquele mundo contido dentro de um simples ponto comercial, costumeiramente dentro de uma praça municipal.

            José Carlos Pereira, de 67 anos, é dono de uma banca em Tatuí, no interior do estado de São Paulo. Uma cidade grande demais para ser considerada pequena, e pequena demais para ser considerada grande, com seu principal atrativo sendo o reconhecimento como a Capital da Música e a terra dos doces caseiros. Na região central do município, está lá, a banca Alvorada, há 25 anos na praça Martinho Guedes.

Banca Alvorada na popularmente conhecida “Praça da Santa” de Tatuí | Foto: Juliano Rosa

            Um ponto onde mundos se transformavam e folhas de papel ganhavam vida,essa era a sensação de qualquer criança ao entrar no local. De venda em venda de almanaques e gibis da Turma da Mônica até edições semanais da revista Recreio, a infância de muitos foram mais felizes graças à elas.

            Bernardo Coppe, um adulto de 20 anos, estudante de marketing e já trabalhando com anúncios digitais, um dia já foi o “Bê”, como era apelidado pelos colegas de escola. Um dia já teve oito anos. Um dia já foi uma criança que ia todos os dias na banca do “Zé” com a sua avó, a dona Bernadete e o seu Corsa Enjoy para comprar jornal, que a senhora gostava de ler. Ele relembra que além do jornal, ela sempre comprava para ele um sorvete, normalmente picolés da Kibon, e sempre ao menos uma vez na semana, uma revista Recreio, junto à gibis ou almanaques.

Atual acervo de gibis e quadrinhos | Foto: Juliano Rosa

Zé da Banca, como é chamado pelos seus clientes, destaca que em todos os seus longos anos no ramo, o melhor período de vendas sempre é o mesmo: A Copa do Mundo. Mais do que um evento esportivo que só acontece de quatro em quatro anos, o torneio tem o poder de unir multidões, fazer uma nação inteira que passa o ano inteiro brigando, discutindo e se encrencando, se unir por onze jogadores dentro de um campo representando seu país. E além de muita torcida e união, os álbuns de figurinhas voltam à tona. Sem muito destaque fora dessa época, milhares de crianças passam todos os dias pela banca, entregam um punhado de cédulas e moedas, e pegam, em troca, um monte de “pacotinhos”  para preencher os álbuns.

            O jovem Bernardo, que nunca em toda a sua vida foi um entusiasta de futebol, diferente de muitos de seus amigos e colegas, conta que da mesma forma, a Copa de 2010 marcou a sua infância. Após comprar as figurinhas, separava o seu “bolo” de repetidas e passava as tardes na Praça da Santa com a sua avó, interagindo e trocando os cromos com outras crianças, que muitas das vezes eram bem mais velhas que ele.

            As revistas Recreio não ficavam para trás, como já dito, toda semana o rapaz pegava a edição daquele período, e relembra que elas vinham com brinquedos que acompanhavam as histórias em quadrinhos dentro das páginas. Haviam dragões, insetos, animais pré-históricos, robôs, deuses do olimpo, e muito mais nesse mundo mágico em folhas de papel. E ainda capas tão icônicas que, mesmo mais de uma década depois, ainda está marcado na memória de Bernardo: “Me lembro daquela capa de Minecraft, que falava dos YouTubers da época, por volta de 2012, Venom, Monark, Leon, além de outras edições que contavam sobre o Herobrine, uma lenda urbana dentro da mitologia dos jogos, foi top revistas Recreio da história.”

            E apesar de tantos bons momentos e memórias, o que explica as bancas estarem cada vez mais deixando de existir? José Carlos destaca que em todo seu período no ramo, já viu duas das seis bancas que ele conhece da cidade fecharem, conta que do que um dia já foi 100% de conteúdo recebido, hoje chega apenas 40%. Ele destaca dois fatores decisivos para tamanha queda no comércio: internet e pandemia. Informações da Prefeitura de São Paulo de 2019 já mostravam quedas de 17% no número de bancas, além de mostrar uma realidade onde muitos jornaleiros precisavam se reinventar para se manter, criando espaços de cultura e cafeterias como exemplo.

            José Reiner Fernandes, editor-chefe e proprietário do Jornal Integração durante 49 anos em Tatuí, de dezembro de 1975 à janeiro de 2025, revela que os últimos anos do impresso houve uma notável decaída. Em dúvida sobre o futuro no ramo, “Zé Reiner” quase deu um fim no veículo no final do ano de 2022, quando um publicitário conhecido o convenceu a manter até completar 50 anos em 2025. Quando questionado sobre o ponto de ruptura para a queda de vendas e anúncios, ele destaca que com a ascensão da Internet isso já vinha acontecendo, porém a pandemia foi determinante. A crise econômica global, a falta de meios para o transporte dos exemplares e as restrições sanitárias para contatos pessoais, aceleraram o fim da imprensa escrita não apenas no Brasil, como em todo mundo, como destacado na reportagem da Revista Isto É, “A crise acelerou, praticamente sem margem para dúvidas, a transição para um futuro 100% digital”, afirma o relatório de 2020 do instituto Reuters.

            Hoje, em novembro de 2025, o Jornal Integração se mantém online, deixando vazio mais um espaço da Banca do seu Zé. Uma prateleira que já possuiu seis jornais impressos diferentes simultâneamente,atualmente guarda apenas “O Progresso de Tatuí”, a última imprensa impressa da cidade, e a Folha de São Paulo, com seus poucos exemplares vendidos direto do balcão de venda.

Foto: Juliano Rosa

Histórias, momentos, brincadeiras, interações sociais…, a maioria delas no passado. Estamos em um mundo onde as crianças não precisam mais ir até as bancas comprar gibis por terem um celular em mãos. O mundo digital tomou conta de nossas vidas naturalmente com o passar dos anos. Muitas melhoras, não podemos negar o quão fácil é pedir comida por um iFood, um transporte pelo Uber, ou até mesmo as várias compras que realizamos online, mas em outros aspectos, muitas coisas ficaram… sem graça? Vale destacar as várias sequelas deixadas pela pandemia que estão em todos os lugares, após um evento catastrófico e de muitas perdas em todo o mundo, a sociedade teve de se readaptar, e alguns hábitos, rotinas e hobbies ficaram no passado; talvez sem nem ao menos nos darmos conta.

            José diz que o seu comércio é o suficiente para pagar as contas, a sua principal clientela, que outrora eram idosos indo comprar jornais e crianças com os gibis e revistas, hoje dá lugar aos jovens leitores de mangá, provavelmente o último grande público remanescente do consumo de mídia física. Assim como grande parte dos veículos de comunicação, seja jornal ou revista, migrou para o mundo digital, as locadoras acabaram e deram lugar ao domínio dos streamings, as bancas infelizmente parecem estar com os seus dias contados. Mas a lembrança e memória de quem viveu, nunca estará morta.

Zé da Banca em mais uma venda no seu comércio | Foto: Juliano Rosa

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *