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SARAU O poder transformador da palavra

O poeta paulistano Roberto Piva disse certa vez em entrevista que “a população foi lobotomizada, foi arrancado um pedaço do seu cérebro e a única forma de repor esta parte subtraída é através da palavra poética”. José Alves de Miranda, conhecido apenas por Zé, proprietário do bar Cantinho Girassol, no bairro Wanel Ville 1, parece comungar com essa sentença. “O governo não investe em educação, a ideia é não educar mesmo. Manipular um povo sem formação é muito mais fácil. Através da educação e cultura podemos mudar o país, o mundo”, diz o comerciante. Ele mantém, junto com sua mulher, Cicera de Miranda, um espaço dedicado à literatura e promove quinzenalmente o sarau “Palavra Encantada”, evento que reúne compositores musicais, poetas e qualquer pessoa que deseje declamar seus versos, cantar ou até mesmo encenar esquetes teatrais. O microfone é, democraticamente, aberto a todos. “É o sarau para o povo, não para a elite, não para meia dúzia de privilegiados”, completa.
Livros em mãos livres – Há um ano e três meses à frente do estabelecimento, Zé já conseguiu importantes avanços em seu projeto. Começou, com apenas 10 livros, uma biblioteca comunitária. Hoje há por volta de 300 títulos no acervo. “Incentivar a leitura é o objetivo. Coloquei livros sabendo que ia atrair o público, o que já está surtindo efeito. O brasileiro lê muito pouco. A biblioteca é voltada à comunidade, às pessoas que não tem acesso aos livros. Temos o exemplo de um cara casado com uma mulher que nunca tinha lido um livro em toda sua vida! Ela começou a ler aqui e já pegou mais três livros.”
Correndo os olhos pelas prateleiras presas à parede, é possível reconhecer grandes nomes da literatura universal de todos os tempos, pensadores que ajudaram a mudar o rumo cognitivo, espiritual e ideológico de nossa civilização e a alargar o diâmetro do crânio de muita gente ao redor do planeta, sobretudo no Ocidente. Filósofos, romancistas e poetas de primeiro escalão e valioso quilate histórico enobrecem o ambiente e o tornam, subitamente, rico. Zé explica como funciona o empréstimo de livros e a manutenção da biblioteca. “É gratuito. Se o leitor for conhecido da gente e se interessar por um livro, pode levar. Se não for daqui e estiver casualmente de passagem, ele pode deixar um livro seu e levar outro à sua escolha. Todos os livros que recebemos são de doações, só hoje recebi 30. A tendência é crescer ainda mais.” Ele lembra um projeto similar que mantinha no bairro do Brás, em São Paulo, há alguns anos. “Chegamos a ter mais de mil livros lá. Fazíamos o “Sarau da Amizade”, que reunia, em média, 400 pessoas. Meu bar, o ‘Pioneiros do Brás’, fazia parte da agenda cultural da cidade. Viemos a Sorocaba com a ideia de implantar um bar nesses mesmos moldes porque há aqui uma efervescência cultural, só que faltava um espaço alternativo e livre.”
O encanto da palavra – “Comecei a escrever poesia em 1966, e tenho ainda todos os meus poemas desde aquela data. Todos, obviamente, com muitos erros de português e de concordância, mas ainda assim os guardo, sem corrigir nada”, conta Dado Carvalho, 66 anos, componente do Coesão Poética, grupo sorocabano formado atualmente por 14 poetas e que é presença certa nos saraus “Palavra Encantada”, promovidos no Cantinho Girassol.
 Dado elogia a iniciativa, e destaca a resistência em promover cultura mesmo sem nenhum incentivo governamental. “Com essa proposta do Zé, percebemos o quão fácil é espalhar cultura na comunidade, desde que se queira. Não precisa mais nada, e tem a grande vantagem de não depender do dinheiro do poder público. Eu, particularmente, fiquei pasmo ao ver tanta gente apreciando poesia e aplaudindo estrepitosamente cada colega que declamava. A poesia é do povo e para o povo.”
Carvalho recorda de seu inédito contato com um livro mais complexo, além das histórias em quadrinho que já lia com avidez. “O primeiro livro que li foi “O Príncipe e o Mendigo”, de Mark Twain, cujo volume mandei encadernar e tenho até hoje. Eu tinha uns 17 anos.” Ele fala também das realizações e perspectivas do grupo do qual faz parte, o Coesão Poética. “É um grupo que está crescendo, inclusive em atividades. Já fizemos dois concursos, sendo um de poesia, em âmbito regional, e um de contos, esse em âmbito internacional. Agora, pretendemos realizar um somente para Sorocaba, dirigido exclusivamente à classe estudantil.”
Mas não são apenas escritores de longa data que comandam o sarau. Qualquer um pode se inscrever na lista feita minutos antes do início das apresentações e se expressar no espaço usado como palco, conta Zé. “Tem o Peninha [me aponta um sujeito que bebe tranquilamente no balcão], freguês do bar, que já recitou Cora Coralina uma vez. No começo, algumas pessoas nem sabiam o que significavam a palavra sarau. Tem um rapaz também, o Júlio, funileiro e pintor, que já tem mais de 200 músicas compostas. Ele se apresentou duas vezes aqui, cantando com muita emoção.”
No repertório musical dos saraus, Zé indica que o que predomina é a música nacional, como a MPB e canções folclóricas, e conclui: “Um cidadão bem instruído vai ser uma pessoa melhor. A cultura é muito importante.”
Serviço – O bar e lanchonete Cantinho Girassol fica na rua Alexandre Caldini, 516, bairro Wanel Ville 1, Sorocaba, próximo à Escola Estadual Ana Cecília Martins. O próximo sarau “Palavra Encantada” acontece em 25 de maio, sábado, a partir das 17h. A entrada é gratuita. Mais informações podem ser obtidas na página do Cantinho Girassol no Facebook.

Lucas Montenegro (AgênciaJor/Uniso)


Um comentário sobre “SARAU O poder transformador da palavra

  • Belo texto, amigo Lucas Montenegro, parabéns. Um grande incentivo ao Grupo Coesão Poética de Sorocaba bem como ao Cantinho Girassol, que é um verdadeiro Centro Cultural. Teremos sarau no dia 25, sábado próximo, você e todos seus amigos estão convidados.

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