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Entre calçadas e quebradas: O Slam 015

Por Ana Heloísa Rosário (Agência Focs- Jornalismo Uniso)

Performance “Meus Heróis são negros!” do poeta Vini Alceu – Foto: Arquivo pessoal

Sob a luz amarela dos postes, a Praça Frei Baraúna ganha vida. Nas escadarias do Fórum da Comarca, que há 84 anos observa o passar do tempo, um grupo de jovens se reúne e aguarda o início da batalha. A noite avança, quando o slammaster (mestre de cerimônias) apresenta o coletivo, mas não chama os participantes imediatamente. Antes disso, ele toma para si o palco improvisado. Com o punho erguido em direção ao céu, ele faz uma pausa, deixando o silêncio se acomodar. Sua voz irrompe, e a praça se transforma em um templo, onde as palavras ganham forma, intensidade e significado:

“Cortando paradigmas como um Machado

Antes mesmo de assumirem que Assis era preto

Heróis no topo do topo, de punho cerrado

Onde a lei, era o preconceito

Heróis em Soweto, um povo segregado

Madiba sai de trás das grades para ser eleito

Antes de T’chala, já ouvia falar de Zumbi

Nos Palmares se escutava o estrondo

Força raiz, resiste o quilombo

Nos livros de filosofia queimados Sabedoria Griô, resiste o Banto

Para tirar os pretos dos cantos

Resgatar o nosso orgulho com acalanto

Em verdade vos digo

Talvez era preto o Santo dos Santos [..]”

Vinicius Alceu da Silva Cunha, poeta, mestre de cerimônias e artista independente, se apresenta com uma energia que reverbera. Aos 37 anos, vindo de Ind, Vinicius é um dos principais responsáveis pelo resgate e pela continuidade do Slam Sorocaba, hoje conhecido como Slam 015.

O evento começa, e com ele, a promessa de duas horas de pura troca. “Poesia de calçada, entre becos e quebradas: Slam 015!”, Vinicius grita, incitando o público a repetir o mantra que, mais do que um slogan, se tornou símbolo do coletivo. A plateia responde em uníssono. E então, com energia, ele dá início à batalha: “Poeta na voz!”.

A paixão de Vinicius pela escrita surgiu de maneira inesperada. Aos 14 anos, sentado na calçada de casa, ele ouviu pela primeira vez a música “Jesus Chorou” dos Racionais MC’s. As palavras, cruas e diretas, o impactaram. “Senti interesse naquilo, porque não gostava da forma como as escolas mostravam a poesia. Queria escrever daquele jeito”, conta com um brilho nostálgico nos olhos. E assim, com uma caneta nas mãos, começou a sua busca por ritmo, poesia e rap.

Porém, o slam, de origem em Chicago em Illinois, só entrou na sua vida aos 29 anos. Imerso na cultura da sua cidade, ele conheceu os coletivos de cidades vizinhas como Jundiaí e Indaiatuba. Mas só em 2022 ele conheceu o Slam Sorocaba. O coletivo, então ameaçado de desaparecer por conta da rotatividade de pessoas, encontrou nele a liderança que resgataria a chama do movimento. “O slam é um movimento cultural, algo coletivo. Conforme passa o tempo, o pessoal vai tendo outras prioridades e acaba deixando de lado”, reflete Vinicius.

O slam, mais do que uma competição, é um espaço de celebração da poesia. “Os poetas estão ali para mostrar a sua poesia, não para batalhar. O slam é um formato dinâmico que promove a nossa arte, que faz com que a interação com o público exista e reforça esse contato entre poeta e plateia. Para o pessoal jovem, isso é uma porta de entrada para o conhecimento, permitindo descobrir grandes nomes como Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus e por aí vai”, comenta. 

O slammaster introduz as regras da batalha após os aplausos para sua performance. Ele, juntamente com Sabah Machado Farah, escolhe os jurados e apresenta a temática daquela noite calorosa, “o tema desse mês é chamego: poesias sobre amor e qualquer forma de amor”.

Curiosamente, Sabah não sobe ao palco nem disputa a batalha. Seu papel é outro: organizar a sequência das apresentações e contabilizar as notas. Professora de história, aos 24 anos, Sabah carrega desde a infância um profundo interesse por coletivos. Na adolescência, sua paixão floresceu, levando-a a viajar pelo país através do Movimento Estudantil. Foi assim que seu amor pela educação tomou forma. “O slam é algo orgânico, natural. Ele surgiu aqui em Sorocaba em 2016, e vi de perto todo esse cenário mudando. Naquela época, a gente tinha poucos espaços para se apresentar”, ela compartilha.

Em uma das raras ocasiões, Sabah se apresentou em uma Feira Literária – Foto: Arquivo pessoal

Poeta de longa data, Sabah prefere não participar das batalhas, “é delicado para mim, não curto a sensação de estar sendo julgada. Adoro ver as notas, as competições, mas quando eu me coloco naquela posição, não consigo”. Nas raras vezes que decidiu batalhar, Sabah recitou uma poesia que expressa o seu sentimento pelo coletivo:

“SE LIGA,

Mó congestionamento na castelo:

Produzindo cultura e cura

Dia de ocupar a grande otelo

Escrevi essa no domingo do habiteto

Passei a arte no débito

O olhar deles? No crédito

[…]

Gargalhando e tirando relo

Eles sentem dor de cotovelo

A gente livre feito cachorro caramelo

Ressignificando essa praça

Acordando do pesadelo

Salve quem Salva

Essa eu recitei sem sentir medo”

O penúltimo verso, imortalizado na pele de Sabah por meio de tatuagem, é uma homenagem à poesia e ao slam. “Ele é um caminho para o conhecimento. Principalmente aos mais jovens. Como professora, percebo que a arte tem esse poder de troca. Ele auxilia na formação de identidade e no reconhecimento com as poesias. É um caminho para diversas possibilidades”, descreve com orgulho.

A noite avança para a última fase da batalha, e duas vozes se destacam: Ana Cris e Nandona. As poetas finalistas se preparam para recitar sobre amor. É neste pequeno espaço de tempo, infinito a seu modo, que entramos em realidades íntimas, amostra de experiências desses poetas.

Entretanto, há uma figura essencial do Slam 015 que não está no palco naquela noite, mas também é um dos pilares do coletivo: Tainara dos Santos Oliveira, a Thay. Bombeira civil, pedagoga e mãe, Thay tem auxiliado a manter o movimento vivo em Sorocaba. Aos 29 anos, ela representou o interior de São Paulo com orgulho, e competiu pela primeira vez no Campeonato Paulista de Poesia Falada em 2024, ao lado de Ana Cris e Nandona.

Thay representou Sorocaba no Campeonato Paulista de Poesia Falada – Foto: Arquivo pessoal

“É sensacional você ver de perto poetas que você admira, como a Roberta Estrela D’Alva e Mel Duarte. O slam tem me oferecido oportunidades que eu jamais pensei que teria”, ela comenta. Para Thay, o slam vai além da simples competição. Ele é um espaço cognitivo, onde se compartilha arte e consciência. “Eu quero que as pessoas sejam salvas através da poesia, por que ela também fez isso comigo. Ela me deu um meio para expressar toda a angústia que eu sentia internamente”, ela conta que mais do que um local de denúncias sociais, ela também queria falar sobre amor, e foi no Slam 015 que viu essa oportunidade.

Ao término da disputa, não houve vencedor, pois as adversárias empataram. Livros são espalhados pela calçada e os poetas, que antes proclamavam a céu aberto, escolhem quais palavras levarão consigo para casa. Assim, o slam em sua essência cumpre seu propósito maior: o de criar um espaço de reflexão, de partilha e de transformação, onde a arte se torna um meio de conexão.

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