Rota 66: A face oculta da violência e o eco das vidas esquecidas
Por João Vitor Casagrandi (Agência Focas – Jornalismo Uniso)
[Resenha] “Rota 66 – A história da Polícia que mata”, de Caco Barcellos, é uma obra que em minha visão, transcende o simples relato jornalístico ou livro-reportagem, apresentando-se como uma investigação profunda sobre a violência institucionalizada no Brasil, revelando não só número e fatos, mas também, revela-se o funcionamento da necropolítica, conceito idealizado por Achille Mbembe.
Mbembe argumenta que a necropolítica se refere ao poder de decisão sobre quem pode viver e quem deve morrer, especialmente em contextos marcados por hierarquias raciais e sociais: é o exercício extremo de violência e controle do Estado sobre as vidas consideradas descartáveis, em geral corpos negros e periféricos, tratados como inimigos internos.
Desde as primeiras páginas, Barcellos expõe como a violência policial não se limita à repressão, mas se transforma numa política sistemática de eliminação, marcada por crueldade gratuita, racismo e preconceito, operando essencialmente sobre corpos negros e periféricos. O livro abandona o terreno da exceção e revela que, nessas zonas urbanas de morte, identificar o inimigo deixa de ser um expediente de guerra para se tornar rotina administrativa: em cada ficha forjada, cada execução sumária sem investigação, o leitor é confrontado com o poder brutal de um Estado que, longe de proteger os seus cidadãos, investe na produção cotidiana de mundos de morte.
Barcellos, por meio de uma apuração rigorosa e narrativa envolvente, devolve o olhar das vítimas e expões os artífices do extermínio.
O caso que dá nome ao livro “Rota 66” é emblemático justamente por romper o padrão: três jovens de classe alta de São Paulo, em uma noite de 1975, foram perseguidos e assassinados brutalmente pela polícia em um dos bairros mais nobres da cidade. O episódio teve grande repercussão e expôs o funcionamento cruel da Rota: mesmo diante da perplexidade da elite e da comoção pública, nada resultou em punição para os policias, que foram absolvidos pela Justiça Militar (mesmo após provas robustas de que a arma usada para justificar o confronto foi plantada na cena do crime, e de que os tiros foram disparados pelas costas, quando as vítimas já estavam rendidas).
A ocorrência, atípica por envolver jovens brancos e influentes, revela o alcance da política de extermínio e como o aparato judicial se empenha em proteger os matadores oficiais.
Além do custo humano incalculável, o livro revela o absurdo das operações policiais: gastos elevados em munição e recursos ao longo das perseguições e tiroteios, um desperdício público que serve apenas ao propósito de eliminar vidas inocentes.
A investigação conduzida em “Rota 66” vai muito além do caso emblemático dos jovens assassinados nos Jardins. Barcellos explora e desvenda como a criação da ROTA, uma tropa de elite policial em São Paulo, causou um crescimento exponencial da criminalidade violenta no Estado, um paradoxo que revela o fracasso da estratégia repressiva baseada no extermínio sistemático.
O livro detalha que, muito mais do que combater o crime organizado, a ROTA passou a agir como agente de violência arbitrária, promovendo execuções sumárias motivadas por meras desavenças pessoais ou preconceitos, transformando a ostensividade em sinônimo de brutalidade e medo.
Entre as inúmeras vítimas dessa lógica cruel, está o caso da morte do ator que interpretou Pixote, no filme “Pixote, a Lei do Mais Fraco”. Fernando Ramos da Silva, o Pixote, foi brutalmente assassinado porque os policias não sabiam distinguir o personagem da pessoa, reiterando a brutalidade institucionalizada e o desprezo absoluto pela vida daqueles que são marginalizados pela sociedade e pelo Estado.
O trabalho em “Rota 66” ganha corpo único graças ao uso sofisticado do jornalismo literário, empregando técnicas de storytelling para transformar os dados frios e investigações em uma narrativa capaz de prender o leitor e provocar envolvimento emocional. Barcellos reconstrói cenas como em um roteiro de cinema, contando com descrições profundas, diálogos ambientados e detalhamento preciso das ações, atingindo um equilíbrio raro entre dinamismo narrativo e rigor factual.
O apelo emocional da obra é potencializado justamente pelo foco nos sobreviventes e nos familiares das vítimas, estabelecendo uma identificação imediata do leitor com a dor, a injustiça e as marcas deixadas pela violência institucional. Ao longo do texto, a alternância entre relatos de perseguições, depoimentos, perfis das vítimas, bastidores das investigações e contextualização política cria uma composição literária que humaniza os números e denuncia o impacto da crueldade estatal no cotidiano dos mais vulneráveis e marginalizados.
Ao concluir a leitura, é impossível não reconhecer seu papel incontornável como obra de denúncia e memória. Caco Barcellos eleva o jornalismo ao combinar investigação e literatura, investindo dez anos na apuração e cruzamento de milhares de documentos para dar nomes, rostos e humanidade às vítimas do extermínio promovido pela polícia paulista.
O livro desmonta a retórica oficial da legítima defesa, revela a cumplicidade de estruturas estaduais e evidencia, através de histórias individuais, a face mais perversa da necropolítica: a banalização da morte, alimentada por preconceito, racismo e impunidade institucional.
A obra se mantém atual e necessária, ao entregar ao leitor não apenas números, mas vivências, luto e resistência, prova de que o compromisso ético do jornalismo pode ser transformador ao iluminar realidades ocultas e questionar os limites do poder de Estado sobre a vida dos cidadãos.
