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Samba, o meu professor da vida!

Ontem foi o dia de um dos amores da minha vida: o Samba! Aquele que “a gente não perde o prazer de cantar, e fazem de tudo pra silenciar”.Ele é uma paixão diária e eterna, e “depois que o bichinho do samba te pica, não tem mais volta”, como diz meu amigo e Mestre Cláudio Silva. O samba é uma típica representação das africanidades brasileiras, desde suas ligações com o Semba (a matriz africana do Samba) até suas variações no tempo através de um povo em diáspora.

O Dia Nacional do Samba começou a ser comemorado primeiramente em Salvador. A data (2 de dezembro) é uma referência à primeira vez em que o compositor Ary Barroso pisou em solo baiano. Apesar das comemorações se iniciarem por volta de 1940, a data se tornou nacional em 1963.

Segundo minha amiga e pesquisadora do Samba, a professora Jéssica Bastida Raszl,

Em São Paulo, os primeiros sambas de que se tem notícia nasceram quando da importação de escravos do nordeste brasileiro para trabalhar nas lavouras de café, no século XVIII, e, posteriormente, no bairro da Barra Funda, onde muitos negros trabalhavam como carregadores de café na linha do trem, sendo essenciais para o nascimento do samba paulista.

Ao se falar da canção “Pelo Telefone” (1920, considerado o primeiro samba brasileiro gravado em vinil), escrita por Donga e Mauro de Almeida, algumas pessoas se esquecem de uma figura importantíssima no processo de difusão do ritmo: Tia Ciata, a grande mãe do samba, como intitula o livro de Nei Lopes e Rui de Oliveira. Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, era uma famosa mãe de santo do candomblé carioca que recebia (e muitas vezes escondia da polícia, devido à lei da vadiagem) em sua casa, grandes músicos da época.

Falando em criminalização, trago outro trecho interessante do texto da professora Jéssica (que foi escrito em conjunto com a professora Míriam Cristina Carlos Silva) que ilustra bem como foi:

No Rio de Janeiro, a imprensa coagia compositores a abdicarem a temática da malandragem nos seus sambas, na base da censura. Tal fato é enfatizado em dezembro de 1939, com a criação pelo governo, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que tinha como principal objetivo difundir a ideologia do Estado Novo junto à população, além de procurar impedir que as injustiças sociais fossem denunciadas por meio das letras dos sambas. Só em 1940, o DIP vetou mais de 300 letras de músicas e, em 1941, proibiu a divulgação do samba “O Bonde de São Januário”, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, por considerar uma exaltação à malandragem.

Falando em Tia Ciata, me lembrei de uma palestra que fiz para alunos de comunicação da Uniso em 2024, onde eu colocava fotos de pessoas negras famosas e outras que foram muito importantes, mas que quase ninguém conhecia ou lembrava. Me recordo de ter dito que, se existia um Péricles cantando samba hoje, é porque teve uma Tia Ciata que defendeu e abriu o caminho lá atrás. Mostrei também que, para uma artista como a Iza poder estar cantando samba livremente hoje, foi preciso muita luta como as de Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra e Dona Ivone Lara. Mulheres que, como muitas outras, tiveram que lutar contra o machismo (que ainda existe) dentro das rodas de samba. Para quem não sabe, essas mulheres precisavam que um amigo, um primo ou qualquer outro homem que fosse, assinassem seus sambas para que eles fossem divulgados, pois letras escritas por mãos femininas não eram aceitas. Ah, Rafa, mas faz tempo isso. Não. Falo dos anos 1980, logo ali.

Obrigado, Samba, por ajudar a formar o meu caráter!

Através de você, aprendi muita coisa.

Aprendi história, pois sempre “disseram que a Áurea foi assinada para libertar. Mentira! Foi pura hipocrisia, pois nenhum Negreiro obteve volta ao lar”.

Aprendi sobre o sofrimento dos escravizados. Que “na senzala, o negro não tinha sossego, ao ver a chibata tremia de medo, faziam de tudo para não apanhar. Só sentia em seu rosto suor escorria, trabalhando embaixo do sol de meio-dia, se sacrificando para se libertar”. Negros que com seus gritos disseram: “Senhor, eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor, tenho sangue avermelhado. O mesmo que escorre da ferida, mostra que a vida se lamenta por nós dois. Mas falta em seu peito um coração, ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz”.

Aprendi geografia, pois Pernambuco é gigante e “no Capibaribe também tem maré”.

Aprendi Filosofia, já que é preciso “sonhar e agir o meu sonho. A quem não age o sonho só resta sonhar”.

Aprendi sobre saúde, que o álcool não é a solução para os nossos problemas: “procuro afogar no álcool a tua lembrança, mas noto que é ridícula a minha vingança. Vou seguir os conselhos de amigos e garanto que não beberei nunca mais”.

E até sobre política você me ensinou: “Jantou no meu barracão e lá usou lata de goiabada como prato. Eu logo percebi é mais um candidato para a próxima eleição. O guia que estava incorporado disse: esse político é safado, cuidado na hora de votar”.

Aprendi questões raciais. Que “temos a cor da noite, filhos de todo açoite, fato real de nossa história. Se preto de alma branca pra você, é o exemplo da dignidade, não nos ajuda, só nos faz sofrer, nem resgata nossa identidade”. Que “na pirâmide social, o povo negro é a base. Assassinado pelo estado, padece silenciado as desumanas condições. Pretos presos em grilhões, desde a dita abolição”.

Aprendi poesias de amor como: “eu me confesso, literalmente em suas mãos, apaixonado, noutro planeta eu já fui seu namorado, esta paixão entre nós dois é coisa lá Deus. Cuida de mim, porque você é o mais real dos sonhos meus, no temporal, você é meu farol de milha, meu sol não brilha sem a luz dos olhos teus”. E “se você chegar e me encontrar, no samba eu lhe peço um favor, respeite o insano, sagrado e profano, que foi o nosso amor”.

Aprendi que “arroz com feijão e um torresmo à Milanesa”, é um banquete na marmita de quem tem fome. E a não ter medo de responder há quem vem cuidar da minha vida, pois “se eu quiser fumar eu fumo, se eu quiser beber eu bebo, eu pago tudo que eu consumo, com o suor de meu emprego”.

Você me ensinou a te defender: “Não, não basta ter inspiração. Não basta fazer uma linda canção. Pra cantar samba se precisa muito mais. Samba é lamento, é sofrimento, é fuga dos meus ais”.

Como grande defensor da ancestralidade, aprendi com você a respeitar a partida de um sambista: “escolas, eu peço silêncio de um minuto. O Bexiga está de luto, o apito de Pato N’água emudeceu. Partiu. Não tem placa de bronze, não fica na história. Artista de rua morre sem glória, depois de tanta alegria que ele nos deu”.

Com você, aprendi sobre religiosidade, que meu santo “na Bahia é São Jorge, no Rio, São Sebastião, Oxóssi é quem manda, nas bandas do meu coração”. Me relembrando todos os dias da “intolerância que chutou a santa e queimou terreiros. Santa ignorância que remete aos tempos lá do cativeiro. Em nome de qual o Senhor esculacha morador, que na sexta veste branco? Esse é o meu povo de santo sob a lei do opressor. Mas, por favor respeita meu alguidar, respeita o povo de santo, que eu respeito o seu altar”. E pedindo para que sempre “Respeitem minha ancestralidade, tolere a diferença na raiz. Meu samba luta pela igualdade. No ilê da Cantareira sou feliz. Negra cultura, nossa essência na filosofia, na religião. Herança de Ifá é resistência, me abraça somos irmãos!

Em você meu professor Samba, encontrei até meu testamento: “Quando eu morrer, não quero vela nem pranto, quero um caixão em preto e branco, com a bandeira do meu Coringão. Peço, cantem um samba maneiro, com repique, tantã e pandeiro, cavaquinho e violão”.

Partindo para o final deste texto, deixo alguns recados importantes:

O samba marca como um giz, é eterno porque é raiz. Não quero dizer que viver é só sambar, mas sambar é viver, é saber se encontrar. Só o samba faz a tristeza se acabar, só o samba é capaz desse povo alegrar.
Ser sambista é ver com olhos do coração. Ser sambista é crer que existe uma solução.
É a certeza de ter escolhido o que convém. É se engrandecer e sem menosprezar ninguém

Digo “Pra você que vive a falar, a criticar, querendo esnobar, querendo acabar com a nossa cultura popular”, “Olha, eu vou te dá um alô que é prá você se mancar”: aqui comigo, “falador passa mal rapaz”.

Vou parando por aqui, pois “logo as lágrimas vão rolar, e vou chorar de tanta emoção pois eu sei que minha missão é fazer esse povo sambar e cantar. Meu samba, vou levando à frente, sou um elo da corrente que não pode se quebrar”.

Aconselho a você que seja sambista também”.

E “Antes de me despedir, deixo ao sambista mais novo, o meu pedido final: não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar”.


REFERÊNCIAS

Lista das canções citadas, por ordem de aparição no texto:

A Batucada Dos Nossos Tantãs – Grupo de Fundo de Quintal.

Raízes – Claudio Silva.

Orgulho Negro – Jovelina Pérola Negra.

Samba-Enredo 2018: Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão? – G.R.E.S Paraíso do Tuiuti.

No Capibaribe Também Tem Maré – Paulo Perdigão.

Força Maior – Samba da Opinião.

Peito Vazio – Cartola.

Candidato Caô Caô – Bezerra da Silva.

Identidade – Jorge Aragão.

Filho da Rua – Agrício Costa e Marcelo Lopes.

Mais Feliz – Zeca Pagodinho.

Se a fila andar – Toninho Geraes.

Torresmo à Milanesa – Adoniran Barbosa.

Maneiras – Zeca Pagodinho.

Pintura sem Arte – Candeia.

Silêncio no Bexiga – Geraldo Filme.

Oxóssi – Mariene de Castro.

Povo de Santo – Luciano Bom Cabelo e João Martins.

Samba-Enredo 2024: Ifá – G.R.C.S.E.S Acadêmicos do Tucuruvi.

Epitáfio Corinthiano – G.R.E.S. Gaviões Da Fiel.

Seja Sambista Também – Fundo de Quintal.

Falador Passa Mal – Os Originais do Samba.

Missão do Sambista – Denis Costa.

Não Deixe o Samba Morrer – Alcione.

Artigo:

Dia Nacional do Samba: Da descriminalização à globalização do ritmo, Jéssica Bastida Raszl e Míriam Cristina Carlos Silva. Disponível em: https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/438489/dia-nacional-do-samba-da-descriminalizacao-a-globalizacao-do-ritmo#:~:text=*%20J%C3%A9ssica%20Bastida%20Raszl%20e%20M%C3%ADriam,capital%20baiana%20pela%20primeira%20vez.

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